Estranho destino de um dedo
Eloah Margoni
Que ninguém subestime as narrativas! O que é contado sobre a periferia é verdade. Mudarei nomes, para respeitar e proteger as identidades das pessoas que já são suficientemente ultrajadas e desvalidas. A cidade, por outro lado, é grande. Várias são as hipóteses dos locais para os acontecimentos. Havia, e ainda há, a jovem mulata, Ana, muito magra. Faltava-lhe um dos dentes da frente. De aspecto maltratado, era simpática porém, e usuária de crack. Também trabalhava no tráfico, transportando a droga, dizia-se. Um dia, houve uma briga entre Ana e outra moça rival, por causa de algum namorado. A contenda entre as duas chegou a tapas ou a puxões de cabelos, no melhor estilo de luta feminina amadora. Mas Ana, como dissemos, era franzina, e não levou a melhor na disputa. A oponente decepou-lhe, a mordidas, a falange distal de um dos dedos da mão esquerda. Um ato violento, de imprudente valentia por parte da oponente, considerando-se a incerteza sobre a saúde de Ana que, também, tinha um grupo, ou um pequeno bando de amigos. Aqui a história diverge um pouco. Alguns falam que a moça frágil foi em busca dos conhecidos, segurando a falange decepada numa das mãos, mas a maioria conta que após sair correndo, cheia de dor, na direção dos companheiros, estes empreenderam busca da falange e a encontraram. Ao acharem a ponta perdida do dedo não houve, porém, qualquer idéia de reimplante. Seria algo moderno demais, e ali, plena idade média. Não se pensou nisso... O que se fez, na verdade, foi bem macabro e tratou-se apenas de um castigo, ou de vingança esquisita, pois os integrantes da galera de Ana, obrigaram sua inimiga a engolir o pedaço do dedo decepado. Conheci a vítima na vigência das muitas sessões de curativos, feitas na unidade de saúde, onde ela soube estabelecer camaradagem conosco. Não tive contato com sua adversária. Ocorreu que alguns meses após tais acontecimentos, na sede de uma das unidades, estabeleceu-se um sobe e desce, passeio, correria, falatório de menores sobre a laje e no telhado. Isso ficou inoportuno, um transtorno para o posto; fora de controle mesmo. Num momento de maior irritação, uma das agentes de saúde daquela unidade, moradora do próprio bairro aliás, chamou a polícia por telefone e na frente dos usuários do local. A polícia chegou, subiu ao telhado e descobriu que ali, na laje, se armazenava crack. Enfim, era um “escritório informal” dos adolescentes e crianças envolvidas no trafico, encarregados de guardarem o entorpecente. Naturalmente a substância foi apreendida pelos policiais, dois meninos levados para a tutela do Estado. O “prejuízo” financeiro deles, comentou-se, girou de torno de dois mil reais. Uma fortuna para muitos. A agente de saúde ficou na mira daquele bando. Correram ameaças pelo bairro e ela, com filho único pré-adolescente, ficou apavorada compreensivelmente. Reunimo-nos, tão preocupados quanto impotentes perante este perigo! Ou não. Sugeri que procurássemos alguém intermediário para um “pacto de paz”, alguém que conhecesse os “personagens ocultos” e que pudesse acalmá-los, já que nós nem sabíamos quem eram. Quem intermediou foi Ana e o fez com muita boa vontade e atenção. Nada de mal ocorreu com a agente de saúde nem com seu filho.Não sei onde estará Ana agora, se ainda no mesmo local ou não, se melhor ou ainda maltratada, se sorri sem um dos dentes da frente, se ainda fuma crack, mas sei que ela teve um papel positivo em nosso dia a dia. E nós também, talvez, no dela.
Mabel e Luna enfrentam a cidade (cap I)
(Histórias de Arrepiar)
Eloah Margoni
Afogo-me em admiração por aquelas bravas meninas, uma de quinze, a outra de treze anos, que empreenderam a Grande Cruzada através da cidade, para salvarem a si mesmas (no que foram bem sucedidas). As circunstâncias se resumiam simplesmente nisso: Mabel e Luna eram filhas de uma senhora bem pobre, de limitada inteligência, escassa percepção e de pouca coragem pessoal ou bom senso. Viviam também com um irmão de 27 anos, talvez usuário de drogas (nada incomum) ou apenas violento, bruto, que ameaçava a mãe e tentava seduzir as irmãs. Foi duro para elas perceberem que não podiam contar com a genitora! Narravam-me com que surpresa e mágoas viam a mãe se calar frente aos perigos iminentes para todas. Isso me dizia Mabel com ressentimento; e mais, falava que a mãe preferia o filho a elas, até porque o moço trabalhava na construção civil e trazia dinheiro para casa. E chegaram a dizê-lo na frente da D. Sônia que ficava, simplesmente, calada. Tal me foi contado, tanto em consulta , quanto quando ambas me encontravam à porta da Unidade de Saúde. Nunca poderia me omitir a respeito disso! Tínhamos, nós da unidade, uma base de conduta nesses casos, para fazermos uma intervenção eficaz e também para nossa própria proteção. Costumávamos não ser muito incisivos, e sim vagos quanto à possibilidade de ação de nossa parte, especialmente quando sabíamos que atuaríamos! É que pisávamos continuamente em campos minados. Além do mais, tudo acontecia paralelamente a uma avalanche de outras demandas, necessidades e urgências várias. O caso se espremia entre papéis, doenças agudas e febres, questões todas importantes também, mas no momento, essa se impunha. Não fora eu a primeira pessoa a ouvir o drama, contavam-me Mabel e Luna com vivacidade, pois, chegaram a ir até um dos pronto-socorros (uma referência para elas), falar com a policial que lá se encontrava no dia. Idéia que tiveram. Tal empreitada deve lhes ter sido difícil! Primeiro a necessidade de arranjarem o dinheiro para as passagens, para lá partirem, pois a cidade não é pequena! Toda a dificuldade, humilhação e depois o desânimo ao ouvirem que tinham de se dirigir à delegacia da mulher; mais nada... Mabel e Luna não desistiram, e novamente arranjaram o dinheiro para o ônibus, faltaram da escola e foram em busca da “Delegacia da Mulher”, mais ou menos como um cruzado buscaria o Santo Gral; só que desequipadas. Chegaram ao centro, no terminal rodoviário. E que cidade cruel! Duras e barulhentas avenidas, perigosas, com grande trânsito. Tantas máquinas velozes e brilhantes, conduzidas por pessoas sobre duas rodas, usando capacetes, ou ocultas naquelas latarias; pessoas que nada tinham a ver com Mabel e Luna! Elas, por sua vez, foram perguntando aqui, ali, e caminharam, caminharam entre semáforos, buzinas, andaram perdidas de um lado para outro, nas ruas que não conheciam, entre out doors e lojas, sob o sol forte e sem grana, sem rumo, perguntando, indagando, onde seria a tal delegacia. Acharam uma; não era aquela... Segundo elas não foram acolhidas. Não se lhes deu atenção. Cansadas, mais uma vez retornaram à casa, para enfrentar o irmão, Ou seja, voltaram a seu tormento cotidiano, ao sagrado inferno de cada dia.(continua)
Mabel e Luna enfrentam a cidade (cap II)
Eloah Margoni
Por minha vez, enquanto Mabel e Luna batiam de porta em porta, por assim dizer, pedindo socorro, com muitas dificuldades em meio às consultas, às urgênciias de saúde, acolhimentos do dia a dia, telefones ocupados, etc...entrei em contato com o Conselho Tutelar da cidade, em primeiro lugar. E aí, deve-se ver que mesmo quando temos acesso à uma boa conselheira, isto é, madura, interessada, experiente e dinâmica, o que não é garantido mas tampouco incomum, vemos que o próprio Conselho Tutelar tem limitações...
Primeiro, precisa averiguar os fatos, e segundo, não tem poder por si só. Necessita de uma ordem judicial para desempenhar seu papel. Ora, sem juiz fixo na vara da infância e juventude, o que era o caso e parece que ainda (2010) é assim na cidade, já viram. Dias, semanas preciosas podiam passar e efetivamente se passaram, sem vislumbre de soluções!
Tinha eu inúteis e inevitáveis insônias. Pensava nas meninas, especialmente na mais nova, Luna, que sempre achei um doce e muito esperta. Foi assim que liguei, e não demorei a fazê-lo, para o número do disque denúncia , 181, " sua arma contra o crime". Mas vi que era arma descarregada, de plástico, de brinquedo. Ineficaz! Alguém já experimentou? Mal atendida que fui; a moça do lado de lá da linha mostrou-se muito hostil. Fez pouco caso de tudo. Embora eu fornecesse o endereço e o nome das crianças, o da mãe delas inclusive, queriam saber também o nome do irmão e...quase a cor das cuecas do mesmo, se é que as usava! Não anotou nada aquela infeliz; recusou-se a registrar o que lhe passei.
Lá fui eu pedir à agente comunitária de saúde que me trouxesse o nome do moço ameaçador, rapaz que não conhecíamos. Mas, mais uma vez, isso era apenas os míseros um trinta avos do meu dia! Difícil era achar espaço para a resolução desta situação rapidamente... E assim, mais tempo precioso corria.
Enquanto isso, Mabel e Luna sofriam e ainda temiam, se escondendo do irmão e procurando evitá-lo. Eu, entre medicamentos, prescrições, condutas médicas e outros doentes ansiosos e necessitados, ou menos necessitados, mas bem ansiosos, seguia. Minha energia, e não estou reclamando só estou narrando, saía do corpo como suco sai de um copo, sugado por alguém com um canudinho.
Finalmente, obtive o nome completo do suspeito e liguei de novo e mais uma vez para o desventurado 181, minha falsa arma contra crime. Embora fossem obrigados a registrar a denúncia desta vez, nada mais aconteceu a seguir. Sem efeito. Resultado nulo. Zero.
O Conselho Tutelar, também atolado e trabalhando no seu ritmo, investigou e acabou por obter ordem judicial para abrigar as meninas. Ufa! E que criança ou adolescente gosta de um abrigo de menores? Resposta: só alguém em situação desesperadora, limite; alguém cuja própria casa tornou-se inabitável! Precisamente, era esse o caso das duas mocinhas.
Mabel e Luna enfrentam a cidade (cap III e último)
Eloah Margoni
Então, Mabel e Luna afinal foram abrigadas. Soube-o não através do próprio Conselho Tutelar, mas sim das agentes de saúde. Em seguida, as meninas em carne e osso apareceram pra me contar as novas.
Se disser que tenho qualquer simpatia por abrigos de crianças, mentirei. Estes permanecem como o derradeiro recurso nos casos extremos, além de quase não terem vagas... Mas igualmente mentiria se negasse que foi um grande benefício para aquelas mocinhas irem para um deles, ou se afirmasse que estas não estavam felizes! Estavam.Também eu me senti aliviada e alegre com o desfecho provisório daquele drama.
Em nossa conversa, ninguém questionou nem indagou como pararam lá. Elas não tinham qualquer curiosidade sobre o assunto. Pareciam partir da assertiva de que a comunidade deveria mesmo se incumbir delas e protegê-las; era o que esperavam. Certíssimas quanto a isso, também estavam, infelizmente, erradas. Tiveram sorte, pois a cidade na verdade não cuida, e sim tritura e devora. Mas lá estavam elas animadas, e vinham visitar a mãe frequentemente. Mabel, a mais velha, muito preocupada com a dona Sônia, por esta ainda morar sozinha com o filho violento... Luna, mais criança ainda e intolerante, afirmava quase satisfeita e vingada, que a mãe estava arrasada sem elas, mas que a culpa era dela mesma, mãe, por não ter tido coragem para ajudar as duas. Fiz o possível para atenuar as emoções negativas, assumindo a tarefa árdua de explicar o inexplicável. De um lado, argumentar que D. Sônia era limitada e não tinha a força e a garra que elas mesmas, tão jovens ainda, já demonstravam. De outro ângulo, acalmar Mabel e explicar-lhe que não era atribuição desta salvar a mãe neste caso, e que a própria D. Sônia deveria começar a reclamar (coisa que jamais fizera) e procurar ajuda, e que a lei “Maria da Penha” seria útil a ela.
Dias depois D. Sônia pareceu e se lamuriou bastante sobre estar só, sem as filhas. Procurando não julgá-la ou condená-la, nem absolvê-la de nada, que não era o papel a ser feito, disse-lhe que fora muito necessário e importante para as irmãs terem se ausentado da casa, e que, considerando que ela não tivera condições de reação frente à ameaça grave, se queria mesmo bem às filhas, ficaria satisfeita com a situação atual. Nunca soube se entendeu o que falei ou se se alegrou mesmo por Mabel e Luna, mas não mais se queixou para mim.
O que resta a dizer às minhas jovenzinhas destemidas é que, onde quer que se encontrem agora ou no futuro, diante de adversidades recorram à sua própria determinação e boa autoestima, à sua fé e inconformismo. Essas características certamente as salvaram e as fizeram vencedoras na dura luta travada contra as tendências do destino e contra a assustadora e fria cidade, quando muitas e muitas outras mabéis, lunas, marias, evelins e jaquelines, não menos merecedoras de respeito (não sou só eu a afirmá-lo), sofrem diariamente fragorosas derrotas e comem o pão que o diabo amassou!