1° de janeiro de 2040: Um quase-conto de Natal
Antonio Carlos Cavalli
“Hoje, o dia amanheceu com um brilho diferente. Aqui no deserto, os dias são sempre muito brilhantes, chega a doer nos olhos, mas hoje os tons da vegetação, a paisagem, o horizonte, a água do mar, tudo está mais nítido, mais intenso, mais tridimensional. Consigo perceber nuances magníficas, como há muito tempo deixei de ver, mesmo com o auxílio dos fantásticos óculos de última geração. Estou gostando, essa sensação visual está me fazendo bem; acho que não vou tomar nenhum remédio hoje.
Como de costume, estou na varanda aberta para a placidez das águas e dos morros cultivados. Sinto-me tão bem aqui, foi a melhor coisa que fizemos quando decidimos nos mudar para cá, alguns anos atrás. Téia, minha mulher, relutou bastante, queria ficar próxima dos bisnetos, mas aceitou depois que assinamos o plano de viagens mensais, o que nos permite passar uns dias por mês com eles. Aqui, os idosos da Quarta Idade têm muitos benefícios. E nós já estamos no meio dessa nova etapa da vida. Pode não ser a melhor, mas, seguramente, é muito divertida também. Somos imensamente felizes.
Comecei a escrever essa crônica agora, no computador holográfico que ganhei de Gustaf, meu neto. Estou me divertindo muito com essa nova maquininha que não lembra nem de longe os antigos computadores do início do século. Ele gosta de me trazer novidades tecnológicas. Ainda passamos horas conversando sobre todos os assuntos. Sempre tivemos uma empatia muito grande desde que ele nasceu. Estamos aguardando a sua visita. Vai chegar com a esposa hoje à tarde. Eles não puderam vir para o Natal, mas mandaram os filhos para passar uns dias conosco e a casa está em festa com a presença deles. Foram acompanhar a bisavó no seu passeio matinal à beira-mar.
Embora estejamos morando sozinhos aqui, esses incríveis meios de comunicação atuais nos permitem falar e ver as pessoas no meio da sala, com uma nitidez incomparável. Fico sempre extasiado com tais tecnologias e comparo com as que usávamos em 2010, por exemplo. Os bisnetos acham muito engraçado quando falo das coisas de 2010, mas esse foi um ano que ficou marcado em nossas vidas porque representou a mudança, para melhor, de todos nós. Talvez por isso minhas lembranças retornem a ele com frequência e gratidão.
Gustaf sempre foi brilhante em tudo o que fez e trabalha agora em projetos gigantescos de recuperação de áreas degradadas no mundo todo. Sua empresa já conseguiu reverter a degradação do Mar Morto, que voltou a ter águas com o mesmo volume e teor dos tempos bíblicos. Uma façanha que já lhe rendeu uma comenda da Organização Mundial. Sou um de seus maiores admiradores.
Depois de aposentados, os pais de Gustaf engajaram-se num projeto mundial de recuperação de jovens na África. A grande experiência adquirida no Brasil para casos semelhantes levou-os a abraçar essa missão extremamente importante para a pacificação de países menos favorecidos do continente africano. Tenho muito orgulho deles e mantemos estreito relacionamento para ajudá-los a perseverar na causa benemérita.
Meu filho mais novo é professor na Universidade de Jerusalém e está no comando do programa de equalização mundial de expertises, ou seja, a reunião de pesquisadores de mesmo padrão intelectual e formações diferentes das universidades de todo o mundo. Esse é um grande esforço das nações para o melhor aproveitamento e crescimento holístico de sua elite intelectual. Coincidentemente, hoje ele está em missão na África e deve encontrar o irmão e a cunhada. Vamos vê-los mais à noite pelo comunicador holográfico de última geração de Gustaf.
A cada cinco anos, vou ao Brasil para um evento especial: a reunião da turma da faculdade. Somos ainda um considerável número de sobreviventes, bastante capengas, diga-se, mas com o mesmo brilho no olhar dos idos de 1966, quando nos formamos. Ainda escrevo uns versos para a ocasião. Eu os chamo de “cantos senoidais qüinqüenais”. Em 2036 escrevi o “canto senoidal do décimo quinto qüinqüênio”. Uma marca histórica, sem dúvida.
Nessas viagens, tenho tido a oportunidade de verificar como o Brasil vem melhorando nessas últimas décadas. Hoje, encontra-se entre os cinco países mais desenvolvidos do planeta. E o que mais me alegra é o índice de desenvolvimento humano que alcançou. As últimas medições dão conta de que já está em 27° lugar, o mesmo que Israel ocupava em 2010. Não é pouca coisa, foi preciso um grande esforço da sociedade civil e do governo para se chegar a isso. Incrivelmente, hoje políticos corruptos se suicidam de vergonha quando são pilhados em alguma falcatrua, coisa impensável no início do século.
Acho que me alonguei nessas memórias, de repente ficou escuro e eu sinto um grande cansaço. Vou descansar um pouco. Gustaf já deve estar chegando. Amanhã, reviso esse texto e continuo a escrever”
Antonio Carlos Cavalli
“Hoje, o dia amanheceu com um brilho diferente. Aqui no deserto, os dias são sempre muito brilhantes, chega a doer nos olhos, mas hoje os tons da vegetação, a paisagem, o horizonte, a água do mar, tudo está mais nítido, mais intenso, mais tridimensional. Consigo perceber nuances magníficas, como há muito tempo deixei de ver, mesmo com o auxílio dos fantásticos óculos de última geração. Estou gostando, essa sensação visual está me fazendo bem; acho que não vou tomar nenhum remédio hoje.
Como de costume, estou na varanda aberta para a placidez das águas e dos morros cultivados. Sinto-me tão bem aqui, foi a melhor coisa que fizemos quando decidimos nos mudar para cá, alguns anos atrás. Téia, minha mulher, relutou bastante, queria ficar próxima dos bisnetos, mas aceitou depois que assinamos o plano de viagens mensais, o que nos permite passar uns dias por mês com eles. Aqui, os idosos da Quarta Idade têm muitos benefícios. E nós já estamos no meio dessa nova etapa da vida. Pode não ser a melhor, mas, seguramente, é muito divertida também. Somos imensamente felizes.
Comecei a escrever essa crônica agora, no computador holográfico que ganhei de Gustaf, meu neto. Estou me divertindo muito com essa nova maquininha que não lembra nem de longe os antigos computadores do início do século. Ele gosta de me trazer novidades tecnológicas. Ainda passamos horas conversando sobre todos os assuntos. Sempre tivemos uma empatia muito grande desde que ele nasceu. Estamos aguardando a sua visita. Vai chegar com a esposa hoje à tarde. Eles não puderam vir para o Natal, mas mandaram os filhos para passar uns dias conosco e a casa está em festa com a presença deles. Foram acompanhar a bisavó no seu passeio matinal à beira-mar.
Embora estejamos morando sozinhos aqui, esses incríveis meios de comunicação atuais nos permitem falar e ver as pessoas no meio da sala, com uma nitidez incomparável. Fico sempre extasiado com tais tecnologias e comparo com as que usávamos em 2010, por exemplo. Os bisnetos acham muito engraçado quando falo das coisas de 2010, mas esse foi um ano que ficou marcado em nossas vidas porque representou a mudança, para melhor, de todos nós. Talvez por isso minhas lembranças retornem a ele com frequência e gratidão.
Gustaf sempre foi brilhante em tudo o que fez e trabalha agora em projetos gigantescos de recuperação de áreas degradadas no mundo todo. Sua empresa já conseguiu reverter a degradação do Mar Morto, que voltou a ter águas com o mesmo volume e teor dos tempos bíblicos. Uma façanha que já lhe rendeu uma comenda da Organização Mundial. Sou um de seus maiores admiradores.
Depois de aposentados, os pais de Gustaf engajaram-se num projeto mundial de recuperação de jovens na África. A grande experiência adquirida no Brasil para casos semelhantes levou-os a abraçar essa missão extremamente importante para a pacificação de países menos favorecidos do continente africano. Tenho muito orgulho deles e mantemos estreito relacionamento para ajudá-los a perseverar na causa benemérita.
Meu filho mais novo é professor na Universidade de Jerusalém e está no comando do programa de equalização mundial de expertises, ou seja, a reunião de pesquisadores de mesmo padrão intelectual e formações diferentes das universidades de todo o mundo. Esse é um grande esforço das nações para o melhor aproveitamento e crescimento holístico de sua elite intelectual. Coincidentemente, hoje ele está em missão na África e deve encontrar o irmão e a cunhada. Vamos vê-los mais à noite pelo comunicador holográfico de última geração de Gustaf.
A cada cinco anos, vou ao Brasil para um evento especial: a reunião da turma da faculdade. Somos ainda um considerável número de sobreviventes, bastante capengas, diga-se, mas com o mesmo brilho no olhar dos idos de 1966, quando nos formamos. Ainda escrevo uns versos para a ocasião. Eu os chamo de “cantos senoidais qüinqüenais”. Em 2036 escrevi o “canto senoidal do décimo quinto qüinqüênio”. Uma marca histórica, sem dúvida.
Nessas viagens, tenho tido a oportunidade de verificar como o Brasil vem melhorando nessas últimas décadas. Hoje, encontra-se entre os cinco países mais desenvolvidos do planeta. E o que mais me alegra é o índice de desenvolvimento humano que alcançou. As últimas medições dão conta de que já está em 27° lugar, o mesmo que Israel ocupava em 2010. Não é pouca coisa, foi preciso um grande esforço da sociedade civil e do governo para se chegar a isso. Incrivelmente, hoje políticos corruptos se suicidam de vergonha quando são pilhados em alguma falcatrua, coisa impensável no início do século.
Acho que me alonguei nessas memórias, de repente ficou escuro e eu sinto um grande cansaço. Vou descansar um pouco. Gustaf já deve estar chegando. Amanhã, reviso esse texto e continuo a escrever”
Encontrei este texto inacabado no computador do meu avô. Cheguei há pouco do mar, onde fui depositar suas cinzas, como era seu desejo e nosso pacto desde a minha infância. Ele fez sua travessia, placidamente, aos 99 anos.
Tiberíades, 1° de janeiro de 2040
Gustaf
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