Christina Aparecida Negro
Silva
Debruçada no parapeito da janela da velha
casa, ela olhava ao longe...olhos miúdos, pesados pela idade, porém brilhantes,
pois voltava seu olhar para outro tempo, outro espaço, para dentro de sua vida
de outrora, rica memória.
Via-se menina, de avental xadrez, carregando
o ovo quente no bolso do acessório para a mamma grávida do irmãozinho
que nasceria brasileiro. Via-se rindo... uma largueza de dentes bonitos a
encantar o cozinheiro que, escondido, entregava o alimento durante a travessia
do navio da Itália para o Brasil.
Ao piscar de olhos, via-se mocinha, enamoratta
de Victório, primo amore, com quem teve 12 filhos e muitos
netos. Via a netinha, da filha mais nova, sentada em seu colo na cadeira de
balanço, embevecida com suas histórias.
Quantas saudades! Saída ainda menina de sua
terra natal, apreensiva em um país de língua e costumes diferentes dos seus,
apesar do aconchego dos pais e irmãos, descobriu-se uma mulher forte, decidida
a lutar contra as vicissitudes com maestria. E quantos percalços enfrentou no
início do século XX, que nós, hoje, nem fazemos ideia! Sem energia
elétrica, passava a ferro em brasa a única camisa que seu marido tinha.
Lavava-a à noite e de manhãzinha, já limpa e passada, ele a podia vestir para o
lavoro. Criou seus filhos, ajudando seu marido na lida com tijolos de
barro. Sim, ela também carregava a matéria prima para construir seu sonho, sua
vida, seu país.
Enfrentou a Revolução Constitucionalista de
32, abrigando os soldados paulistas na disputa contra os mineiros, pois morava
quase na divisa entre os dois estados. Agradecia a Deus por não haver visto
nenhum derramamento de sangue por ali, apesar da tensão do conflito. Os bonitos
moços de farda, segundo uma das filhas, só se hospedaram na grande casa,
desfrutando da mesa farta e gostosa. Nessa época, a situação financeira estava
mais estável com a fábrica de cerâmica produzindo para uma crescente população
tambauense.
Aos 60 anos, perdeu uma das vistas para o
glaucoma, o azul do olhar como o mar mediterrâneo foi substituído por uma
prótese de porcelana, tão perfeita que enganava até os filhos que sabiam desse
procedimento cirúrgico. A imagem de Santa Luzia, carregando os olhos no
pratinho, era sua relíquia.
Tanta vida deixou às gerações que a
precederam. Muitas histórias de família, de risos alegres nos almoços festivos,
de superação em situações difíceis, também de momentos de dor e perdas de entes
queridos, da música de todos de sua família. Marido maestro ensinou a Arte aos
filhos, netos e formou uma bela banda na cidade; a todos que queriam aprender
música, tinha prazer em ensinar de graça. Tocava violino nos incipientes
cinemas de então, enquanto era necessário esfriar a tela de projeção. A
eterna saudade do companheiro que, dizia ela, vinha cobri-la todas as noites de
frio por longos anos, mesmo depois de morto.
Quando lhe perguntavam se gostaria de voltar
para rever seu país, respondia com um categórico – No...o Brasil é mio
país.
Recordar da minha nonna me traz muitas
saudades e também deixa meu coração cheio de gratidão por ter me permitido
dar continuidade ao seu legado de amor por minha pátria, por gostar de música,
de contar histórias, de comida italiana e ter muito respeito e reconhecimento
pelos imigrantes ( de todas as nacionalidades) que fizeram o Brasil.
* Texto Premiado em segundo lugar no Concurso Literário Viajando na Leitura, organizado pela Academia Piracicabana de Letras e Instituto Histórico e Geográfico de Piracicaba