Moira não conseguia tirar os
olhos daquela palavra que parecia saltar entre as outras no texto à sua frente:
adaptável. Apenas um minuto atrás ela
estava em frente ao espelho soltando os cabelos anelados e escolhendo a roupa
que usaria para ir ao aeroporto pegar Álvaro depois de um mês fora do país. O
aviso de uma nova mensagem chegando chamou sua atenção e ela voltou-se para a
tela ansiosa quando percebeu que era dele a mensagem. Como? Há pouco mais de
vinte e quatro horas recebera o aviso de que era essa a última comunicação
dele, dando o voo e a hora de chegada.
Não conseguiu terminar de ler,
seus pensamentos retrocederam cinco anos e ela se viu diante do “falecido” que
lhe dizia, do alto da sua arrogância: “Não quero uma mocinha cheia de sonhos e
vontades, quero alguém que seja adaptável
ao meu estilo de vida”.
Com quase trinta anos, pensou
ter tirado a sorte grande, ia casar com um homem elegante, inteligente e com
boa situação financeira, que poderia lhe dar uma vida confortável e o filho que
seu relógio biológico estava pedindo. Na época aquelas palavras lhe soaram como
elogio, afinal já estava ficando pra titia e suas chances com o sexo oposto
estavam se tornando escassas. Pagou o preço de ser adaptável, mas não foi
feliz.
Apesar de detestar, cuidava da
cozinha, apesar de gostar de dormir cedo, ficava com ele em longos jantares e
mesmo tendo pavor de aviões, ia a todas as conferências de negócios pelo mundo
afora. Todos os seus sonhos de compartilhar com alguém seu amor pela literatura,
pelas caminhadas, filmes românticos e o desejo de ser mãe, acabavam na leitura
da página financeira de algum jornal, em andar esbarrando nos garçons dos
jantares de negócios, a ver filmes sobre empresários bem sucedidos e visitar
algumas vezes os sobrinhos dele. Mas a ganância e a arrogância levaram o marido
por caminhos escusos e perigosos, a idade e o coração não aguentaram e ele se
foi, deixando pouca saudade e muitas dívidas. Vendeu a casa, os carros e agora
sobrevivia escrevendo para jornais e revistas.
Depois de cinco anos de
abençoada solidão, onde só cabiam livros, amigos e viagens, por uma
coincidência quase impossível, conheceu Álvaro. Num sábado chuvoso, quando nada
podia fazer senão ler ou escrever, que era o que ela estava fazendo, seu
computador travou. Desesperada com a possibilidade de perder todo o texto
digitado e mesmo sabendo que era pouco provável encontrar alguém num sábado à
tarde, ligou para a prestadora de serviços, rogando aos céus que Bruno, seu
fiel escudeiro para assuntos de informática, tivesse se atrasado. Um toque,
dois, mais um e outro, estava quase desistindo, quando uma voz desconhecida
atendeu. Depois de um segundo de indecisão perguntou por Bruno. “Já foi
embora”, disse educadamente a voz do outro lado da linha. Moira prendeu a
respiração. “Algum problema?”. Um pouco chorosa ela contou o que tinha
acontecido. A voz tornou-se atenciosa e precisa, aos poucos foi orientando seus
passos até que tudo se resolveu. Depois do alivio e dos agradecimentos ela
pediu pra mandar o Bruno na segunda pra ver se tudo estava bem e receber. Mas
quem veio foi Álvaro, veio na segunda, saíram na terça, falaram ao telefone na
quarta e trocaram e-mails todos os dias. E assim ela soube que Álvaro era o
dono, que ficara para preparar um seminário sobre jogos virtuais que
aconteceria em breve no Japão.
Foram três meses maravilhosos,
com encontros no parque para a corrida, com idas ao cinema e ao teatro e muitas
conversas no aconchego dos cafés sobre preferências literárias. Era por ele que
ela esperara a vida toda, ele seria o pai do filho desejado e o companheiro
amoroso que dividiria com ela o futuro.
Chegou finalmente o dia da
partida para o Japão, “Vamos nos falar todos os dias” e assim fizeram: e-mail,
MSN, Skype e tudo o que o mundo digital oferecia para aproximar duas pessoas
que se amam.
Seus olhos ainda não
acreditavam no que lia: “Moira, tenho ótimas notícias, meu projeto foi
classificado, os empresários japoneses me querem, vão patrocinar todo meu
trabalho, vou finalmente entrar em grande estilo para o mundo digital,
participar de reuniões internacionais e jantares memoráveis, comprar a casa dos
meus sonhos e um belo carro; vou ter que pagar um pequeno preço, é claro, a
médio prazo não poderemos ter filhos, você não poderá escrever com tanta frequência,
pois terá muitas obrigações sociais e a viagem de lua de mel vai ser adiada por
alguns anos. Mas eu sei que você é mulher suficientemente adaptável para compartilhar tudo isso comigo.”
Moira levou um segundo para se
lembrar de sua experiência anterior, outro segundo para levar o cursor até a
palavra apagar na tela. Depois apertou a tecla enter, desconectou a Internet,
desligou o computador.
Enquanto prendia os cabelos e
procurava com os olhos o último livro comprado e não lido calçou o tênis,
colocou o boné e foi caminhar no parque à procura de um lugar agradável para
ler. Nunca mais queria ser adaptável a nada. Ia ser feliz do seu jeito mesmo.
* Conto classificado em 3º lugar no concurso Buriti 2014
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