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sábado, 7 de novembro de 2015

ADAPTÁVEL *


Lídia Sendin

Moira não conseguia tirar os olhos daquela palavra que parecia saltar entre as outras no texto à sua frente: adaptável. Apenas um minuto atrás ela estava em frente ao espelho soltando os cabelos anelados e escolhendo a roupa que usaria para ir ao aeroporto pegar Álvaro depois de um mês fora do país. O aviso de uma nova mensagem chegando chamou sua atenção e ela voltou-se para a tela ansiosa quando percebeu que era dele a mensagem. Como? Há pouco mais de vinte e quatro horas recebera o aviso de que era essa a última comunicação dele, dando o voo e a hora de chegada.
Não conseguiu terminar de ler, seus pensamentos retrocederam cinco anos e ela se viu diante do “falecido” que lhe dizia, do alto da sua arrogância: “Não quero uma mocinha cheia de sonhos e vontades, quero alguém que seja adaptável ao meu estilo de vida”.
Com quase trinta anos, pensou ter tirado a sorte grande, ia casar com um homem elegante, inteligente e com boa situação financeira, que poderia lhe dar uma vida confortável e o filho que seu relógio biológico estava pedindo. Na época aquelas palavras lhe soaram como elogio, afinal já estava ficando pra titia e suas chances com o sexo oposto estavam se tornando escassas. Pagou o preço de ser adaptável, mas não foi feliz.
Apesar de detestar, cuidava da cozinha, apesar de gostar de dormir cedo, ficava com ele em longos jantares e mesmo tendo pavor de aviões, ia a todas as conferências de negócios pelo mundo afora. Todos os seus sonhos de compartilhar com alguém seu amor pela literatura, pelas caminhadas, filmes românticos e o desejo de ser mãe, acabavam na leitura da página financeira de algum jornal, em andar esbarrando nos garçons dos jantares de negócios, a ver filmes sobre empresários bem sucedidos e visitar algumas vezes os sobrinhos dele. Mas a ganância e a arrogância levaram o marido por caminhos escusos e perigosos, a idade e o coração não aguentaram e ele se foi, deixando pouca saudade e muitas dívidas. Vendeu a casa, os carros e agora sobrevivia escrevendo para jornais e revistas. 
Depois de cinco anos de abençoada solidão, onde só cabiam livros, amigos e viagens, por uma coincidência quase impossível, conheceu Álvaro. Num sábado chuvoso, quando nada podia fazer senão ler ou escrever, que era o que ela estava fazendo, seu computador travou. Desesperada com a possibilidade de perder todo o texto digitado e mesmo sabendo que era pouco provável encontrar alguém num sábado à tarde, ligou para a prestadora de serviços, rogando aos céus que Bruno, seu fiel escudeiro para assuntos de informática, tivesse se atrasado. Um toque, dois, mais um e outro, estava quase desistindo, quando uma voz desconhecida atendeu. Depois de um segundo de indecisão perguntou por Bruno. “Já foi embora”, disse educadamente a voz do outro lado da linha. Moira prendeu a respiração. “Algum problema?”. Um pouco chorosa ela contou o que tinha acontecido. A voz tornou-se atenciosa e precisa, aos poucos foi orientando seus passos até que tudo se resolveu. Depois do alivio e dos agradecimentos ela pediu pra mandar o Bruno na segunda pra ver se tudo estava bem e receber. Mas quem veio foi Álvaro, veio na segunda, saíram na terça, falaram ao telefone na quarta e trocaram e-mails todos os dias. E assim ela soube que Álvaro era o dono, que ficara para preparar um seminário sobre jogos virtuais que aconteceria em breve no Japão.
Foram três meses maravilhosos, com encontros no parque para a corrida, com idas ao cinema e ao teatro e muitas conversas no aconchego dos cafés sobre preferências literárias. Era por ele que ela esperara a vida toda, ele seria o pai do filho desejado e o companheiro amoroso que dividiria com ela o futuro.
Chegou finalmente o dia da partida para o Japão, “Vamos nos falar todos os dias” e assim fizeram: e-mail, MSN, Skype e tudo o que o mundo digital oferecia para aproximar duas pessoas que se amam.
Seus olhos ainda não acreditavam no que lia: “Moira, tenho ótimas notícias, meu projeto foi classificado, os empresários japoneses me querem, vão patrocinar todo meu trabalho, vou finalmente entrar em grande estilo para o mundo digital, participar de reuniões internacionais e jantares memoráveis, comprar a casa dos meus sonhos e um belo carro; vou ter que pagar um pequeno preço, é claro, a médio prazo não poderemos ter filhos, você não poderá escrever com tanta frequência, pois terá muitas obrigações sociais e a viagem de lua de mel vai ser adiada por alguns anos. Mas eu sei que você é mulher suficientemente adaptável para compartilhar tudo isso comigo.”
Moira levou um segundo para se lembrar de sua experiência anterior, outro segundo para levar o cursor até a palavra apagar na tela. Depois apertou a tecla enter, desconectou a Internet, desligou o computador.
Enquanto prendia os cabelos e procurava com os olhos o último livro comprado e não lido calçou o tênis, colocou o boné e foi caminhar no parque à procura de um lugar agradável para ler. Nunca mais queria ser adaptável a nada. Ia ser feliz do seu jeito mesmo.

* Conto classificado em 3º lugar no concurso Buriti 2014

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