Christina
Aparecida Negro Silva
Paula,
olhando aquela paisagem desértica, sorriu, lembrando-se de sua promessa ao
terminar aquele namoro que se arrastava há quatro anos - Vou
para o fim do mundo – e lá estava ela, literalmente, no extremo sul do
planeta, na Patagônia Argentina, rumo à última cidade antes da Antártida. O
avião aterrissara em El Calafate em escala e ao descer parecia ouvir no vento
sibilante a melodia do filme “ O dólar furado”. Viu-se em 3D, dentro da tela
,cuja paisagem, a estepe, estendia-se a
perder de vista, sem uma única árvore. Onde estaria o Giulliano Gemma ? pensou ela rindo de si mesma. Que loucura ! Justo
ela, tão racional, sair de seu conhecido mundo e conforto para procurar um
homem visto em um sonho ! Pipo. Quem seria ele ? Por que ela tivera aquele
sonho maluco ,porém claro – Sou o Pipo,
procure por mim no fim do mundo... seu personagem onírico assim se
manifestava nos sonhos recorrentes de Paula. Por três vezes, ele aparecera e
lhe dissera as mesmas palavras. Mistério.
Ruidosos
turistas esperavam suas bagagens – uns 5 passageiros tiveram suas malas
extraviadas e estavam no balcão reclamando suas perdas. Quantos brasileiros !
Gostoso ouvir sua língua no meio do burburinho espanhol. Pegou seus pertentes e
rumou para o hotel Esplendor. Faria uma pausa em El Calafate antes de seguir
viagem. O hotel localizava-se no alto de uma colina de onde podia avistar o
lago gelado na frente e nas costas do prédio, as imponentes montanhas. Mais ao
longe – os Andes com seus picos gelados. No dia seguinte, embarcou em um ônibus
já cheio de turistas de seu país para visitar o famoso glacial “ Perito
Moreno”. Soube que o nome era uma referência a um engenheiro que mapeou a costa
da Patagônia e foi , tardiamente, reconhecido por seus feitos. O guia, falando
um portunhol engraçado, comunicou aos passageiros que se olhassem à esquerda do
ônibus, logo veriam o belo glacial . Eis que chega o momento esperado e ouve-se
um uníssono – OH ! Tamanha beleza azul só poderia ser descrita emocionalmente
assim. Uma majestade de gelo avança das montanhas rumo ao verde lago formado do
derretimento das geleiras dos Andes. Da altura de um prédio de 20 andares reina
por todo o ano. Mesmo no verão argentino, com temperatura oscilando entre os 09
a 13 º graus centígrados, o glacial mantém-se imponente. Impossível não
agradecer a Deus por ver essa maravilha da natureza. Aos poucos, o exterior do
glacial derrete-se caindo ruidosamente no lago. Um espetáculo que fazia pipocar
os botões das máquinas fotográficas de todos
que ali foram conferir tanta realeza . Que fim do mundo mágico – pensou
ela. Sentia-se como aquele imenso bloco de gelo, derretendo-se por dentro,
procurando uma pessoa que vira em seu sonho. Derretida ? Aventureira ? Não
encontrava definição para si mesma. Seu coração apenas lhe dizia para entregar-se
ao novo, ao desconhecido, às novas aventuras. Começara bem, estava prestes a
explodir de emoção quando chegou bem próxima, nas passarelas do parque
nacional, ao “Perito Moreno”. Tanta coisa ainda por descobrir ! Jamais imaginara-se
estar naquele lugar incrível. Sem expectativas, naquele instante só queria
curtir a imponente montanha de gelo azulada ali à sua frente. Um grupo de
turistas passou por ela. Uma baixinha falante, seu companheiro idem e outro
casal mais jovem que diziam – Só dos
pesos ! e riam, como eles riam ! Impossível não entrar no clima alegre que
reinava ali. Pesos, a moeda argentina, equivale a 1/3 do real, quantas coisas
poderia comprar se estivesse ali para isso, como as mulheres da excursão de
brasileiros que de uma loja, entravam em outra. Nem mesmo o frio, o vento e a
chuvinha fina que caía impediam as pessoas de brindarem o belo presente que
receberam naquele dia. El Calafate, cidade pequena, nomeada pela frutinha de um
arbusto espinhoso, próprio da estepe, entraria de vez em sua memória e em seu
coração.
No
dia seguinte, mais um vôo, agora sim para o fim do mundo ! O que esperar de
Ushuaia, a última cidade porto antes do continente gelado ? Estava tão
embevecida com o glacial que se tivesse que voltar naquele momento, já
agradeceria a vinda até ali. Mas seu pacote incluía a procura por Pipo,
então...
Ushuaia
estende-se ao largo , aos pés das montanhas , uma faixa de casas coloridas entre a baía do estreito de Benning e a
Cordilheira dos Andes. Janeiro, calorão no Brasil , em Ushuaia, neve nos picos
das montanhas. Nunca vira neve de pertinho. Será que teria a chance de sentir,
tocar, escorregar na neve ? Por onde começar sua meta ? Seu hotel ficava na rua
central e comercial da cidadezinha – Los Naranjos. Excelente localização para
quem procura por um nome. Começou perguntando para os recepcionistas do hotel
que lhe indicaram o centro de informações turísticas, na mesma rua, onde até
poderia carimbar seu passaporte. Ah !
sim, Pipo ! Melhor pegar o trenzinho dos condenados e conferir de perto sua
história – disse-lhe a mocinha do balcão
em bom português. Mais mistério.
Ao
retornar ao hotel notou um rapaz sentado no hall lendo um livro – O TREM DO FIM
DO MUNDO – O título chamou sua atenção, o jovem também. Magia do olhar, ela olhando
para ele que mudou a direção de seus olhos e a fitou brevemente, ambos por uma
fração de segundo , analisaram-se – Paula, jovem, bonita, cerca de 30 anos,
olhar travesso. O leitor, moreno, alto, rosto longo e sério. Belo. Marcou na
recepção a visita à estação do trenzinho. De repente, chegaram os ruidosos
turistas brasileiros, que também estavam hospedados no mesmo hotel. Notou que
marcavam uma noite de vinho e queijo e bate papo animado. Será que o rapaz
sério fazia parte do grupo. Opa ! Outro mistério ?
Na
manhã seguinte, embarcou no mesmo ônibus dos brasileiros, rumo ao trem do fim do mundo. Nele também estava o moço moreno, acompanhado
do livro e , coisas do destino, acabaram sentados lado a lado. O trajeto embora
curto não foi impedimento para que se apresentassem e se conhecessem
superficialmente. Demonstrando interesse na história do livro, Paula ouviu com
atenção as explicações de Leandro - belo nome, como o dono – pensou ela. Ele
explicou-lhe o porquê daquela região ser chamada Patagônia – local dos nativos
pés grandes: patagons, em espanhol –
ou Terra do Fogo, outro nome dado pelos espanhóis conquistadores ao local onde
havia muitas fogueiras. Também ficou sabendo o motivo de existir Ushuaia- baía virada para o
oeste. A Argentina, na disputa pela conquista daquela região, enviou condenados
para lá. Daí a origem do trem do fim do mundo: o transporte desses homens,
presos do regime , que por 25 km iam buscar matéria prima para a construção da
cidadezinha, principalmente a madeira da “lenga” na floresta nativa do local.
Um terremoto, porém, ocorrido nos anos 50 do século passado, destruiu a maior
parte da estrada de ferro. Apenas nos anos 90 ,um empresário interessou-se em
resgatar essa história e recuperou os últimos 7 km das vias do trem do fim do
mundo. A voz de Leandro era calma, quente. Paula sentiu calor nas faces, embora
o termômetro do local marcasse 2º graus centígrados. Enfim, chegaram.
Trem
vermelho, estreito, bem fechado, um mimo para os turistas de todas as línguas
que se apertavam para comprar seus tíquetes. Separaram-se. Paula, vendo
alguns casais abraçados, pousando para
fotos no belo cenário, sentiu falta de Leandro. Opa ! o estava acontecendo
consigo, afinal? Avaliou sua situação – tirou férias, impulsionada por um
sonho, viera até o fim do mundo, queria desvendar o mistério do tal do Pipo.
Fez um amigo (?) , ouviu histórias do local, perdeu o jovem de vista e já
estava sentindo sua falta ? Essa não ! – censurou-se.
Embarcou
em uma cabine, rodeada por casais de muitas línguas – espanhol, português,
inglês, francês – a música nostálgica e a voz gravada em tantos idiomas e em
tom poético, provocaram nela uma
melancolia jamais sentida, ficou triste e sorumbática ouvindo com atenção a
história contada. O trenzinho serpenteava as lindas paisagens : rios, vales,
pequenas pontes, um cemitério de árvores a céu aberto, imagens de tocos,
parecendo cadáveres descarnados em sua madeira branca...Um condenado tentou fugir, pulou do trem. Alguns dizem que sobreviveu e
constituiu família junto a uma nativa, mas o certo mesmo é que morrera
congelado. Seu nome, porém , ficou registrado na história do trem do fim do
mundo, Pipo... seu coração deu um salto! Seu fantasma onírico existira de
fato ! E lá estava ela, ouvindo sua história dramática. Pobre Pipo, tentou a
liberdade. Daí em diante, não conseguiu ouvir mais a voz da guia. Em seus
ouvidos, ricocheteavam a voz do Pipo fantasma – eu procurei a liberdade, correndo todos os riscos e você, o que procura
? O que procurava ? Não sabia responder. Tinha um bom emprego, era
realizada profissionalmente. Terminara um relacionamento que a consumia por
anos, queria sua liberdade, afinal. Onde a encontraria ? No fim do mundo ?
Quanto mistério preparara-se para si mesma. Tão conversando consigo estava que
nem percebeu que o trajeto chegara ao fim. Foi a última a desembarcar. Viu
esquecida no banco uma mochila verde, levou-a para as simpáticas atendentes.
Quem a esquecera, logo viria resgatá-la, pensou. Ela também esquecera suas emoções em tantas
estações ! Encontrar-se com elas naquele local foi a sua melhor sensação em
anos. Onde estaria o moço moreno de voz quente ? Não queria perder essa emoção
jamais. Decidiu o que faria dali prá frente.
O
retorno para o hotel foi feito de ônibus. Estranhou não ter a companhia de
Leandro. Ele não estava mais entre os passageiros. Por onde se escondera ?
Estava ele também, como Pipo, procurando sua liberdade ? Paula já a encontrara.
Na
manhã seguinte, dia de subir a montanha – Martial – para ver, sentir e
escorregar na neve. O percurso incluía – táxi, teleférico e muita caminhada
íngreme por terreno lamacento .Enfim, a neve ! Outra sensação indescritível
para uma habitante de país tropical, cuja temperatura baixa não ultrapassa os
7º graus no inverno na cidade de São Paulo. Gosto de gelo de congelador.
Aparência idem. Brincadeiras de criança. Uns atirando bolas de gelo nos outros.
Gargalhadas, tombos e muita alegria. Na descida, pausa para um chá quentinho no
chalé ao pé da montanha com direito a ritual - almofada, erva, chaleira e até
uma ampulheta para controlar o tempo de infusão. Onde estaria Leandro ? Tão bom seria poder dividir este
momento glorioso com ele. Sua razão lhe dizia que amor à primeira vista era
coisa de folhetim barato, sua emoção pulsava negando essa racionalidade. Estava
apaixonada ! Sentia-se livre para amar novamente e com toda intensidade para
derreter até o gelo das Cordilheiras. Riu e olhou em volta para ver se alguém
havia notado sua insensatez, mas qual ! As pessoas estavam tão excitadas pela
aventura que uma risada a mais não faria a menor diferença naquela imensa
alegria reinante.
Já
na entrada do hotel, ela o viu. Sentado no mesmo local onde o encontrara pela
primeira vez, lendo seu livro. Chegou de mansinho, parando à sua frente.
Leandro levantou os olhos e ato contínuo sorriu para ela - Senti
sua falta – disseram simultaneamente. E claro, riram pela tamanha
coincidência. Não registrou tudo o que se passou depois, apenas que estavam
sentados bem próximos, conversando como velhos conhecidos. Descobriu que ele
era historiador, que escrevia para um blog e recolhia histórias surpreendentes
dos povos da América Andina. Sua próxima parada seria Mendozza, partindo dali
para o Chile. Um convite. Um “aceito” sem incertezas. Paula , Pipo, livres em
suas decisões.
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