Mulas-sem-cabeça
Richard Mathenhauer
Houve um tempo em que mula-sem-cabeça era apenas uma assombração que povoava a vida das crianças, mormente daquelas levadas e ingênuas. Eu próprio, que fui uma criança pacata, vez ou outra era advertido da existência de tão excepcional ser, e não foram poucas as noites que me via com a cabeça coberta com o medo deste animal ceifado. A tal mula-sem-cabeça, conforme os anais da história, foi concebida do conúbio sexual de padre caído em tentação; resultado desse pecado, era a mulher conceber o bebezinho bizarro que tinha por mister assombrar as pessoas.
Modernamente, assim como muitos outros personagens encantados, a Caipora e as Fadas, por exemplo, vão-se aos poucos morrendo. Saci-pererê? Ah, diga isso a uma criança ou adolescente que usa essas calças coloridas e esses cabelos exóticos para você ver o quanto sabem ser sarcásticas estas criaturinhas. E embora os seres fantásticos desapareçam do imaginário infanto-juvenil, a vida toma-lhes de empréstimo o nome para identificar alguns seres menos fantásticos e que também tem por vezo nos assombrar.
Assim, eis que surgem algumas mulas-sem-cabeça que vêem na obra de Monteiro Lobato racismo, especificamente aos negros (agora que o termo racismo abrange mais que etimologicamente o termo define), especificamente no livro “Caçadas de Pedrinho.” Por conseguinte, o Conselho Nacional de Educação sugeriu que “Caçadas de Pedrinho” não seja distribuído nas escolas do país, após aceitar denúncia de que a obra é racista. Isso não é uma novidade. Anos atrás já se debatia o racismo na obra do Lobado. Certamente o livro “polêmico” contribuiria e muito para o aumento do racismo entre os jovens e crianças, assim como algum livro deve ter influenciado esses que andam pondo fogo em morador de rua.
Eu, que fui um leitor de Monteiro Lobato, nunca fui mais nem menos racista por isso. Claro, não é toda a obra deste genial brasileiro que foi mais que um escritor profícuo, mas um visionário, um patriota, um sonhador, um empreendedor que mesmo à revelia da sorte e da perseguição política (ele chegou a ser preso) persistia nos seus objetivos, que se encontra, segundo os entendidos, com vestígios de racismo. Lobato estava inserido num contexto, vinha de uma educação diferente da que hoje recebemos, e não seria estranho que na sua obra se encontrem rastros disso. Se ele retrata uma época, mister é aplicar os termos desta época. Aliás, ler um autor é ler sua época. Portanto, no meu parco conhecimento literário e na minha humílima opinião de leitor, considero a sugestão do Conselho, ela sim, racista.
Ademais, se formos considerar racista este livro, com definições pejorativas e passagens que depreciam os afrodescendentes, teríamos de rever muitas obras, nacionais e estrangeiras, que visitam nossas bibliotecas públicas e particulares. E não somente os livros: filmes, minisséries, novelas. Um exemplo atual é o seriado exibido pela TV Record, “Todo Mundo Odeia o Cris”. Alguém já viu? Não vou reproduzir falas, deixo o convite ao leitor que gosta de aprofundar-se nas discussões (ainda que discussões descabidas como esta) que veja um episódio deste seriado. Acho que em termos de racismo, ali sim o pessoal que pleiteia a abominação de “Caçadas de Pedrinho” encontraria material farto para suas reivindicações. (Note bem: não estou dizendo que o seriado é racista, porque, felizmente, consigo apreender a mensagem do seriado, ainda que apresentada de forma cômica).
Racismo e discriminação, esta que é a manifestação do preconceito, devem ser combatidos a todo instante, porém, é necessário que haja um mínimo de bom-senso. Uma obra pode sim ter vestígios de preconceito, racismo, ofensa não somente aos negros, mas a homossexuais, judeus, a mulheres, “et coetera”.Creio não ser preciso ter mestrado e doutorado em literatura e história para considerar que uma leitura deve ser feita no seu contexto histórico-cultural; ela deve, quando apresenta ou sugere racismo, no caso, servir de estímulo à discussão, ao debate, e não deve ser pura e simplesmente proibida, enfiada no fundo de uma prateleira longe dos olhos dos incapacitados à crítica, segundo os censores. E mais, existe uma imensa diferença entre um livro que defenda o racismo e um livro que, por razões histórico-culturais, tem passagens que são, ou podem ser, consideradas racistas. (Espero que ninguém delire em comparar propaganda racista com literatura que aborda racismo sobre o ponto de vista de retratar a cultura de uma época).
Sugerir a proibição deste livro às escolas garantirá que não teremos novas “sugestões” e por extensão, visto que a criatividade humana é vasta, um novo catálogo à guisa do Índex Librorum Prohibitorum – aquele catálogo da Igreja de Roma dos livros proibidos? E, numa conjuntura maior (visto que neste país tudo é possível), um novo “Bücherverbrennung” – aquela histeria coletiva nazista de fazer fogueiras com livros considerados impróprios?
Se se busca um país realmente menos racista e preconceituoso, não é pelas vias da proibição, das “sugestões” como esta que se alcançará êxito. É pela discussão, pelo debate, pela análise, pela liberdade que o cidadão tem de acesso ao conhecimento para a construção de novos conhecimentos. O resto é folclore.
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