Trem Passado, Memória Presente (in Tardes de Prosa)
Aracy Duarte Ferrari
Parece que ainda está bem nítido o som do apito do trem, do atrito estridulante das rodas de ferro nos trilhos, o visual arquitetônico das estações, a locomotiva e os carros. A Maria Fumaça, do século XIX, famosa, histórica e majestosa máquina a vapor, dirigida pelo maquinista e seu ajudante, usava o carvão vindo das minas do sul do país como combustível para a caldeira e por muitos anos, permaneceu como o melhor meio de transporte.
Reporto-me ao trem de passageiros e às incontidas emoções vivenciadas no bar da estação e ao longo da plataforma, o lugar mais importante da cidade, que era o ponto de encontro da juventude da época. Para lá se dirigiam aqueles que iam realmente viajar, os acompanhantes, que lá estavam apenas para se despedirem e um número expressivo de moços e moças, que lá iam somente para flertar. Para mim era um feliz momento. Quanta alegria... as moças bem trajadas, em grupos de três ou quatro, proseando, sorrindo, extravasando sentimentos, olhavam os moços, que permaneciam encostados às paredes do saguão.
Aquele vaivém divertido tinha um ritmo ou uma cadência própria. A fala era tão intensa e vibrante que, misturada aos outros sons, assemelhava-se a uma orquestra sinfônica. Os assuntos eram tão agradáveis e as conversas, cujos ecos alcançavam grandes distâncias e respondiam prontamente às indagações juvenis, eram as melhores do universo. Expectativas... Sempre havia um clima de ansiedade no ar, quando o trem apitava ao longe e, depois de um espaço de tempo, vinha se aproximando e chegava... trazendo para os nossos corações, batendo acelerados, novas expectativas, emoções e sentimentos, que acabavam envolvendo os jovens que estavam na estação e os de dentro do trem. Ocorriam cenas gestuais, olhares entrecruzados e até bilhetes escritos, às pressas, em papéis improvisados, que faziam as vezes de cartas de amor, fiéis testemunhas do amor à primeira vista e até daquele amor acontecido.
Porque o trem ficava na estação apenas de cinco a oito minutos, quase sempre, o tempo em que se desenrolava esse affaire era mínimo, mas o “aguenta coração” era intenso. Antes de voltarem para casa, os jovens faziam uma pausa no bar da estação para relaxar e saciarem a sede com os refrigerantes mais famosos daquela época: a gengibirra e a lendária cotubaína, cuja fórmula fora inventada por Thales Castanho de Andrade, grande escritor piracicabano e precursor da literatura infantil. O refrigerante era tão doce como seu livro “Saudade” e saboroso como os sonhos juvenis.
Eram assim os encontros na Estação da Paulista: certos, porque tinham data e horário prefixados, e também incertos, porque só as expectativas podiam imaginar o que iria ocorrer e como tudo ia terminar. Eram sempre momentos de beleza e graça, muitas vezes derivados de um único e exclusivo encontro, que nem por isso deixavam de ser entremeados das lembranças das pessoas, dos intensos sorrisos e de expressões poeticamente apaixonadas.
Novamente a saudade...! Daquele tempo em que eu contemplava a chegada e a partida do trem, participava do encontro dos jovens. Sobrando para o amanhã apenas sonhos que perdu¬ram, mesmo depois de passarem por várias gerações, porque as ferrovias, ainda hoje, cantam as suas poesias, dizem as suas prosas carregadas de encantos... Sonhar... Ah! Sonhar até ver chegar o próximo trem de passageiros.
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