Eloah Margoni
Sim, tive sorte na vida; nem por isso ausência
de desafios e de caminhadas por locais áridos e pantanosos. Fui cuidada a amada
mas, na infância, minha avó paterna, uma mulher má e manipuladora que
infernizava a vida dos filhos, colocava minha casa em tensão e alvoroço. Eu, a
filha mais velha... Meu pai sofria extremamente com isso, e muito cedo comecei
a odiá-la tanto quanto amava minha avó materna.
Bem
criança ainda, tinha ímpetos de cólera, perfeitamente reprimida ou controlada.
O que mais fazia era gritar pra mim mesma no espelho, quando sozinha, e
desarranjar meus cabelos bem penteados.
Detestei minha avó durante bom tempo, com
uma cólera fresca, impotente e legítima, sempre desejando a morte daquela
figura responsável pelo suplício dos meus pais e tias. Quando ela finalmente morreu,
anos depois, fiquei bem feliz. Foi grande dia de festa para mim. Achei bom ir a
São Paulo, sob a chuva fina e triste, sepultar aquela odiosa figura, juntamente
com um ou outro personagem vestido de preto que apareceu no enterro. Mas havia
mais, acreditava que a mentalização assassina tinha, finalmente, surtido
efeito! Eu matara minha avó, após anos de persistência, trabalho e desejos bem
direcionados. Estava, por isso, de parabéns. Nunca senti culpa por tais
sentimentos. Porém, já adolescente e adulta jovem, coloquei em questão meus
superpoderes mentais, uma vez que minha avó estava idosa e bem doente.
Não sei se acreditava em inferno naquela
época. Imagino que sim. Inclusive tínhamos uma coleção cara, completa,
ilustrada de A Divina Comédia de Dante; eu a lia muito e conhecia bem todos os
círculos do inferno. Pensando melhor, não sei como meus pais permitiam que eu
dissecasse e folheasse tanto aquilo, com suas figuras desesperadoras e horrendas;
mas talvez achassem que fosse bom para minha formação. Então, certamente eu
acreditava no inferno por força da religião, da literatura e da arte, mas nunca
pensava naquela velha horrível lá tampouco, cara a cara com o demo como ela
mereceria, ou em que círculo estaria. Isso não me importava. Bastava-me que
estivesse longe de mim o suficiente, que sumisse, que deixasse de nos
atrapalhar! E ela havia sumido. Tampouco minha formação cristã ou o exemplo do
lado bom de meus pais fizeram-me pensar que a ira em si causasse algum lastro
de chumbo o qual pudesse puxar-me, vamos lá, para o purgatório por alguns
séculos saeculorum (porque o máximo a que chegávamos, era mesmo ao purgatório).
Karma, darma, maia e outros termos só se apresentaram muito mais tarde, para
mim. Não que os esteja, aqui, defendendo.
Se tivesse prestado atenção a tudo no
entanto, ou tivesse inventário suficiente para tal, teria percebido que poderia
vir a ser uma pessoa muito prática e racional, contrapondo-me às minhas
próprias paixões, o que tento disfarçar às vezes. Mas durante bastante tempo
não parecia isso, porque bem romântica e sonhadora. Na verdade, aquele ódio infantil,
vegetando entre explosões de sensibilidade amorosa por outras pessoas e coisas,
também dava mostra de idealismo futuro, de inconformismo e inclinação para luta.
Tais elementos descritos e um tanto mais
brigaram acirradamente dentro de mim, até que formaram um caleidoscópio
ordenado, onde cada ato, sonho, convicção, arrependimento ou ideia construíram
certa mandala dinâmica que faz também, hoje em dia, a pessoa que me tornei. Seja
lá quem for tal pessoa, seja lá o que acabou sendo, o certo é que, no conjunto,
afinal, faz bastante sentido. Até porque tudo faz sentido no mundo, inclusive
os maiores absurdos, mesmo que não o alcancemos nem jamais venhamos a alcançar.
Isso é puro azar nosso certamente, estarmos tanto assim pregados ao solo.
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