Ivana Maria França de Negri
Em uma de suas últimas crônicas dominicais, Ésio Pezzato escreveu sobre a época em que serviu no Tiro de Guerra de Piracicaba nos anos sessenta e me fez voltar no tempo e mergulhar em boas recordações.
Há mais de quarenta anos, quando comecei a namorar meu marido, ele também foi convocado para o Tiro de Guerra. Eu tinha catorze anos e ele dezoito. Fiquei triste quando precisou cortar os cabelos à escovinha, pois era a época áurea da Jovem Guarda e os jovens curtiam suas longas cabeleiras.
Sempre que podia, vinha namorar usando a farda cor de azeitona impecável e as botas lustrosas. Quando fazia a guarda ao monumento na praça, com o fuzil sobre os ombros por horas a fio, eu passava por ele, que não podia se manifestar, mas sempre dava uma piscadela e eu ficava feliz.
Durante o ano em que serviu, meu então namorado, até acalentou a possibilidade de seguir carreira militar em Agulhas Negras, mas logo retornou ao velho sonho de cursar Medicina. Em parte ele realizou essa vontade ao fazer a residência médica no Hospital das Forças Armadas em Brasília como tenente médico da Marinha.
Mas o que me moveu a escrever esta crônica foram as botas... Ésio conta que as botas, a farda, o cinto, tudo foi consumido pelo tempo. Mas lembro-me das botas do meu marido sempre brilhantes, engraxadas com esmero.
Aquele ano correu rápido e ao final dele, as botas foram aposentadas. Algum tempo se passou, nos casamos, fomos morar em Brasília enquanto meu marido terminava os estudos. Após alguns anos, retornamos a nossa cidade natal.
Nessa época adotamos o nosso primeiro cachorro, um viralata preto de porte grande que meus filhos, crianças ainda, deram o nome de Lobo. Era um filhotão muito travesso e nada escapava de sua voracidade. Um dia Lobo pegou uma das botas e simplesmente fez a festa. Todos os dias mordia, mastigava, e ficava por horas roendo aquele couro e ai de quem chegasse perto para retirar seu brinquedo. Durante semanas foi sua diversão favorita, e aos poucos, foi sendo consumida, o couro se desfazendo de tantas mordidas até que nada sobrou dela.
O que fazer com o pé que restou? Era mês de novembro e eu começava a pensar nos enfeites de Natal e como aquela bota fazia lembrar a do Papai Noel, resolvi transformá-la em adorno. Usei um resto de spray cor de prata e a bota, que era preta, tornou-se prateada em poucos minutos. Recebeu um cadarço vermelho e uma cascata de bolas coloridas.
Por muitos anos aquele pé de coturno ficou enfeitando nossos natais. Meus filhos também achavam que era a “bota do Papai Noel”.
As crianças foram crescendo, adquiri enfeites novos, uma nova árvore de Natal, e resolvi, mais uma vez, pintar a bota solitária, só que com spray dourado. Novo cadarço e bolas vermelhas plásticas substituíram as antigas que ainda eram de material frágil e se quebravam ao menor toque. Atualmente a bota está mais quebradiça, parece de papelão, mas ainda permanece altaneira alegrando nossas festas natalinas.
Muitas pessoas queridas partiram e já não fazem mais parte dos nossos natais, a não ser na saudade que toca fundo o coração. Mas outras tantas crianças amadas chegaram completando o ciclo e a ordem natural da vida.
Mas a bota, mesmo que mais fragilizada, ainda permanece impassível, parte integrante dos nossos natais, enfeitando, alegrando e com muitas histórias para contar ...
* texto publicado na GAZETA de PIRACICABA em 11/03/2012
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