William Moffitt Harris
Faz exatamente trinta e sete anos que saímos de Osvaldo Cruz, na Alta Paulista, para fixar residência em Campinas, onde residia a família de minha esposa. Recordo-me com saudades daqueles dois anos e pouco que ficamos lá no sertão, onde ensaiei os primeiros passos longe da monitoria de meus professores e residentes do Hospital das Clínicas de São Paulo. Eu estava cheio daquele fogo santo do recém-formado, crente que sabia tudo, e disposto a pôr em prática tudo que aprendi. Na parte técnica, trombei com a realidade e me vi muitas vezes em palpos de aranha, precisando me socorrer de colegas bem mais experientes. Em pouco tempo ficamos conhecendo o pessoal da cidade e fizemos boas amizades, das quais algumas perduram até os dias de hoje. Não éramos preparados para enfrentar a simplicidade e sinceridade com que o homem simples da roça manifestava sua gratidão. Dentro daquele corpo rijo, mãos calejadas com a enxada, a pele enrugada e amarronzada com a excessiva exposição ao sol, a roupa cheirando a suor e fogão a lenha, havia um ser tentando nos alcançar, comunicar-se de uma forma cândida, límpida, cristalina. Queria apenas dizer “muito obrigado, seu dotô”. Chegamos a ter, ao mesmo tempo, quase vinte frangos e galinhas num cercadinho que fiz no fundo do quintal. Não dávamos mais conta de comer carne de frango, por mais variada que fosse sua apresentação à mesa. Numa das ocasiões, uma senhora, acompanhada do marido, trouxe-nos num domingo à tarde meia dúzia de uma só vez. Já não me lembro do que é que “salvei” seu filho. Eram descendentes de italianos e lembro-me de ter ido até o portão para ouvir um verdadeiro discurso inflamado com uma grande gesticulação por parte de ambos. Nossa boxer mestiça, a Pipoca, vez por outra invadia o galinheiro e saía triunfante com uma apavorada galinha cacarejando e freneticamente batendo as asas. Pipoca a trazia abocanhada pelos fundilhos e sacudindo seu coto caudal, corria alegremente pelos quatro cantos do quintal. Minha dedicada esposa Maria Lúcia, já no sexto mês de nossa primogênita, não mais subia e descia aquela longa rua poeirenta sem calçamento, duas vezes ao dia, para me ajudar no consultório. Ficava para trás para cuidar da casa, do almoço e da criação. Todas as quintas-feiras passava por lá o peixeiro com sua carrocinha. A vizinhança batia aquele papo enquanto o velho pesava a mercadoria e ia embrulhando as encomendas em jornal. Era afável e comunicativo. Sempre tinha alguma novidade para contar. Numa fria madrugada de inverno foram em casa me buscar de charrete. O peixeiro acabara de ser internado na Santa Casa e estava passando muito mal. O médico de plantão havia saído para atender a um chamado. Constatei ponto de Murphy extremamente sensível e sinal de Blomberg positivo, denotando peritonismo. Diagnostiquei uma colecistite aguda e mandei chamar um amigo cirurgião, enquanto ia preparando a sala de cirurgia e o paciente, com as enfermeiras. Ajudei a retirar a vesícula com seu único cálculo quase do tamanho de um ovo de galinha. O velho, com seus 70 anos, nunca tinha tido uma cólica biliar. Lembrei-me bem do que um de nossos caros mestres de Anatomia Patológica, Prof. Lombardi, nos dissera durante uma necropsia que cálculos renais e biliares são achados de necrópsia em quase trinta por cento dos casos, a grande maioria assintomática a vida toda. O peixeiro, após remoção do dreno, uma semana depois, teve alta e de quebra levou o cálculo para casa. Restabeleceu-se logo e voltou a trabalhar. Por mais que minha esposa insistisse, recusava-se, daí em diante, a receber pagamento pelo peixe que trazia para ela todas as quintas-feiras, até virmos embora de Osvaldo Cruzem agosto de 1963. De vez em quando, havia chamados domiciliares. Um que vem às vezes à minha memória, por ter sido inusitado, foi o caso das abobrinhas. Num prolongado fim-de-semana compareci à casa de um alto funcionário do governo estadual para cuidar de suas duas menininhas pré-escolares que haviam apanhado sarampo. Fiquei preocupado com uma delas que mostrava sinais de comprometimento pulmonar e durante aqueles quatro dias fui à casa delas três vezes. Encerrando esta série de visitas, o engenheiro indagou de mim quanto seriam meus honorários. Disse-lhe que duas abobrinhas estava bem. Pediu desculpas por não dispor delas naquele momento, mas durante a semana providenciaria. Alguns dias mais tarde levou pessoalmente em casa duas enormes abobrinhas para que a Maria Lúcia as preparasse para o jantar. Até hoje fiquei na dúvida se ele estava me gozando ou se realmente achava que havia cobrado o serviço profissional daquele jeito. Quem sabe se ele me achava com cara de vegetariano? Para os leitores que não são daquela época, esclareço que a nota de mil cruzeiros era alaranjada e popularmente cognominada de “abobrinha”. E o que dizer dos ovos-caipira bem fresquinhos que ganhávamos de vez em quando? Havia os que traziam três, já de caso pensado, para pagar a consulta. Outros, mais abonados ou com maior produção em casa, traziam dez ou uma dúzia. Sabiam que a minha esposa, que me secretariava, e eu, nunca mandávamos pessoa alguma embora sem atendimento. Adorávamos ovos e toicinho fritos quase todos os dias com o café da manhã. Naqueles dias, início dos anos sessenta, ainda não dávamos importância ao problema do colesterol. Um sitiante comentou com seu vizinho que minha esposa gostava de chupar cana e, embora fosse pagante, fez questão de apanhar em sua roça, e nos trazer, dois enormes toletes de quase oito centímetros de diâmetro e seguramente quase dois metros e meio de comprimento. Era cana-de-açúcar arroxeada. Nunca tínhamos visto aquele tipo. Uma delícia! Nosso quintal era pequeno e o jardim da frente muito reduzido. Num sábado à tarde, apareceu em casa um senhor acompanhado de sua filha adolescente. Queria por toda a lei dar uma carpida no meu quintal. Até levou sua enxada. De tanto insistir, acabamos deixando-o entrar. Fui acompanhá-lo, enquanto a Malu foi preparar um café, fazendo depois companhia para a mocinha no terraço. Essa, orgulhosamente, mostrou como estava com as mãos completamente boas. Abria e as fechava quase que normalmente e as cicatrizes operatórias estavam sumindo. Era negra e eu observei, alguns meses mais tarde, quando retornou ao consultório para acompanhamento, que havia poucos sinais de quelóide. Nunca me esquecerei daquele largo sorriso desdentado do pai com alguns tocos amarelo-enegrecidos de tanto mascar fumo. Tinha uma barba rala, começando a esbranquiçar e um ligeiro bigode. Repetia sem parar o que já me havia dito inúmeras vezes no consultório: não sabia como me agradecer. Este foi um dos casos que mais trabalho me deu e que tanta satisfação me proporcionou, não só pelo resultado profissional, mas pelo alívio do sofrimento alheio. A jovem de uns quinze anos era catadora de café e havia se machucado em ambas as mãos durante seu trabalho. Em sua casa, colocaram diversos curativos e compressas de ervas medicinais populares, mas sua situação só piorou. Quando foram me consultar, estava com dez panarícios envolvendo todas as falanges. Todos os dedos estavam terrivelmente inchados, duros e amarelados – flutuando, como falávamos no HC “pedindo um bisturi” – inclusive com áreas perioniquiais arroxeadas. O dorso e palma das mãos estavam com características de imensos flegmões. A intervenção cirúrgica durou quase três horas. A anestesia local foi anular a roda dos punhos – um bloqueio perfeito. Transfixei as partes moles das falanges uma por uma, colocando em cada uma um dreno de borracha besuntado com pomada de Furacin. No dia seguinte e, diariamente, durante uns dez dias, mobilizávamos os drenos e renovávamos o Furacin. A adolescente nem piscava. Dizia que não sentia dor enquanto mexia nos drenos. Eu ia aplicando, complementarmente, calor local com uma lâmpada infra-vermelho que havia no consultório. A paciente passava duas vezes ao dia para tomar sua injeção de antibiótico, na farmácia. Aos poucos, fui dispensando os drenos e depois de duas semanas só embrulhava os dedos e as mãos com gazes embebidos com a pomada. A olhos vistos, as feridas foram fechando e as mãos desinchando. Não acreditava que não estava doendo. Eu achava que a paciente estava sendo estóica. Um mês depois da intervenção cirúrgica, iniciei a fisioterapia. Foram exercícios lentos, passivos e progressivos. Passados mais uns quinze dias, iniciamos exercícios ativos dentro de glicerina amornada. Um dia, ela me apareceu com o pai no consultório sem os curativos e com as unhas feitas. Ambos estavam sorrindo de felicidade. Vieram saber quanto deveriam pagar. Disse-lhes que estavam dispensados de pagamento, que o prazer era todo meu e que não se preocupassem com o material. Estava tudo certo. Fiz as recomendações de exercícios em casa duas vezes ao dia. O farmacêutico, Sr. Alípio, também nada cobrou pelos antibióticos lhe aplicados. Cobrou-me o pacote de Furacin pelo preço que pagou ao distribuidor. Recebemos também outros presentes em espécie: espigas de milho, feijão, amendoim e uma vez um rolinho de fumo. Acabei passando-o para a frente porque não havia me habituado a fumar cigarro de palha. Eu, desgraçadamente, fumava na época. Saboreava um bom charuto e dava umas cachimbadas com uma mistura que aprendi a fazer com meu pai. Na composição entrava o Capstan, o Half and Half, um fumo irlandês e um nacional cujos nomes agora não me recordo. Espalhava aquilo tudo num jornal aberto e raspava um quarto de tablete de chocolate amargo da Kopenhagen por cima do fumo. Misturava tudo cuidadosamente e prensava-a no interior de um vidro octogonal, cujas paredes haviam sido besuntadas com mel de flor de laranja. O vidro era fechado e somente aberto após três meses. Sinto até hoje o sabor daquele cachimbo... Abelhas se aglutinavam na tela da janela da sala, procurando entrar, devido ao cheiro, quando meu pai acendia seu caximbo. Sou, caro leitor, profundamente agradecido a Deus pelos momentos de felicidade que estas memórias me trazem. Como disse certa vez o Doctor Samuel Johnson: “Deus nos deu memórias para que colhêssemos rosas em nossos invernos”.
*Capítulo do livro do autor (esgotado): Era Uma Vez Um Menino Travesso. São Paulo: Legnar Editora, 2004. Apresentado na 125ª tertúlia literária do Movimento Médico Paulista do Cafezinho Literário – MMCL realizada na Associação dos Médicos de Santos em 24 de abril de 2010 (21ª reunião do MMCL em Santos), na reunião literária do Movimento Literário Saberes e Sabores – MLSS de 10 de maio de 2010 em S. Gonçalo do Sapucaí - MG e na 17a tertúlia literária do Núcleo do MMCL de Taubaté em 12 de junho de 2010. Pediatra Sanitarista, Prof. Doutor aposentado da Faculdade de Saúde Pública da USP; Fundador (05/05/05) e Coordenador Estadual do MMCL; Membro Titular desde 2003 da Associação Brasileira de Médicos Escritores – SOBRAMES (BR, CE, PE e RS); Separatista e Dissidente da SOBRAMES-SP; Membro Honorário e Correspondente da Academia Maceioense de Letras; Membro Titular da Sociedade Brasileira de História da Medicina; Sócio Titular da Associação Paulista de Medicina; Membro Associado Remido da Associação dos Médicos de Santos. Associado Efetivo da Academia Vicentina de Letras, Artes e Ofícios “Frei Gaspar da Madre de Deus” de S. Vicente – SP.
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