Guarde no cofre
Marisa Bueloni
Um céu azul. Ah, meu Deus, se você consegue ver um pedaço de céu azul da sua janela, da porta da cozinha, de algum lugar do seu escritório ou do consultório, guarde no cofre. Esta visão é maravilhosa e não se pode desperdiçá-la. Há que ser fotografada, ampliada, posta num quadro, emoldurada pelo amor.
Uma sala de jantar, destas bem antigas, com o tampo meio sem brilho, em cujos veios da madeira estão gravadas as histórias de toda a família, as reuniões, os Natais, almoços e jantares, gente em volta contando causos, rindo, chorando, suspirando de saudades... Guarde a mesa no cofre.
O seu carro. Que não é novo, mas é a sua cara e raramente dá problema. Você e ele são a mesma pessoa, um é a extensão do outro. Você faz uma baliza de olhos fechados, porque conhece as dimensões do seu carro e ele entende cada manobra sua como se fosse um amigo sincero. Guarde o carro no cofre.
Um rio. Um rio de águas limpas, onde não é jogado nada in natura nele. Ao contrário, as cidades que o circundam tratam o esgoto. O rio tem peixes e você pode vê-los. A mata nativa das margens está preservada. As águas correm brilhando à luz do sol e você crê que seja mesmo o “rio de águas vivas” que espera encontrar um dia. Pegue o rio e guarde no cofre. Tranque bem, memorize o segredo.
Você – homem ou mulher - ganhou de Deus, de presente, aquela alma feminina, altiva e translúcida, das canções do Chico. Guarde esta bênção no cofre.
Uma casa. Ah, uma casa ensolarada, com um recuo salutar nas laterais, de modo que não se ouçam os humores vizinhos. Uma casa com um jardinzinho gracioso na entrada, para plantar ixoras vermelhas. Uma casa onde se dorme o sono dos justos. Onde o coração se alegra e canta. Uma casa de verdade, em cujo terraço acolhedor os anjos fazem a reunião vespertina para o Ângelus. Guarde-a no cofre, pelo amor de Deus, e não a venda por dinheiro nenhum deste mundo.
Uma gravura de Gauguin, a Virgem de vestido estampado, numa paisagem do Taiti, com o Menino sobre os ombros. Ela está ali, no corredor, onde você começou sua coleção de arte, sem querer, garimpando pôsteres e quadros. Guarde Gauguin no cofre. E reveja quando os olhos pedirem a visão do paraíso.
Ele não fala “a nível de”, “menas”, ou “eu vou estar ligando”, tampouco “casa germinada”. É educado, inteligente, sabe usar um blazer quando é preciso, e é a bondade em pessoa. Case com ele e guarde-o no cofre.
Lembra do caderno brochura, usado lá no antigo primário, em cuja capa de trás estava impressa a letra do Hino Nacional? Se encontrou um desses numa caixa de guardados, com aquela sua letrinha primitiva, manuseie com cuidado e guarde no cofre.
Um travesseiro. Ele é maravilhoso, não dá dor no pescoço e acorda-se flutuando em nuvens de algodão. Celebremos esta bênção, sobretudo depois de experimentar uma montanha deles, juntando pilhas no armário do quarto. Este nosso achado precioso, guardemos no cofre.
Você vive uma paixão devastadora, de ficar sem dormir e sem comer, ou, como diria um amigo fugido, de “arrastar o rabo na cerca”? Guarde esta paixão no cofre.
Os sapos dizem muito do que somos - disse a reportagem na tevê. Estamos usando produtos químicos que afetam os mananciais e causam mutações nos sapos. O brejo está silencioso e não produz mais o coaxar típico. O sapo é uma criatura pacífica e está em extinção. Vendo um destes batráquios por aí, pegue-o delicadamente, faça um carinho nele e guarde-o no cofre.
Uma pessoa. Uma pessoa que parece ter saído de um conto de fadas. Além de tudo, ela sabe dizer “por favor”, “com licença” e “muito obrigado”. Guarde esta criatura do Avatar no cofre. Deixe uma aberturinha para ela respirar, tá?
Um amanhecer com uma luz que você nunca viu. A sensação de plenitude na alma no final da tarde. Um pôr de sol estonteante. A contemplação de estrelas profundas no céu, com lágrimas escorrendo pela face. Guarde toda esta beleza no cofre.
Você já tem mais de 70, mas vai ao baile como se tivesse 20 e ainda sabe dançar tango. Misericórdia! Guarde esta habilidade no cofre. Seu cachorro entende tudo o que você fala para ele. Você tem uma foto de quando ela ainda não era loira, com o rostinho transbordando juventude e felicidade. Guarde bem fechado no cofre.
Há uma pracinha arborizada perto da sua casa, onde as crianças correm, brincam e tomam sol. Guarde no cofre. Você tem a pele bonita, sem manchas, que sorri quando você sorri e conta a beleza da sua idade. Guarde no cofre. Você tem um sonho para realizar, uma viagem de navio, morar numa praia deserta, estudar Filosofia. Guarde os sonhos no cofre.
Se você tem o livro de crônicas de Clarice Lispector “A descoberta do mundo”, guarde no cofre. Se tiver o primeiro livro de poesias do Sergio Antunes, “A casa da infância”, guarde no cofre. Você tem um livro autografado por Drummond? Eu tenho (“Para Marisa, que tanto ama e dignifica os livros.”) e guardo-o no cofre!
Você é uma pessoa feliz, bem resolvida, e passa uma bela imagem de integridade. Guarde-se no cofre! Sua fé é inabalável, a ponto de dar a vida por ela. A fé está acima da sua necessidade básica de sobrevivência? Guarde a fé no cofre. Nos dias de hoje, meu anjo, isso não tem preço, você sabe.
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