A fila da vida
Marisa Bueloni
A vida tem uma fila implacável e ela anda. Já fui a dois velórios este ano. Os bons vão indo embora e tem um montão de vaso ruim ficando. Dona Morte não brinca em serviço. Ela organiza o funesto cadastro e, um a um, os nossos amados vão saindo de cena.
Sinto uma agonia mortal nos velórios. Não me conformo. Jamais irei me conformar. Ô hora dura!... Hora dolorosa. Que triste é receber o telefonema avisando o falecimento. Mesmo sabendo do estado grave da pessoa em questão e tendo-a visitado, seja em sua casa ou no hospital, o desfecho sombrio é sempre uma dor sem nome.
Jovem ou idoso, com saúde ou sem saúde, todos se vão.É uma regra impiedosa. Num dos velórios a que fui, depois de encomendar o corpo, o padre saiu dizendo: “É a fila da vida...ninguém escapa”. Diante desta impotência, sucumbimos mais ou menos consolados, mais ou menos convencidos, mas sempre tristemente inconformados.
O primeiro velório foi no mês passado. Uma amiga querida e muito especial. Estava nos seus oitenta, mas era uma mulher magnífica, extraordinária, que fará falta ao mundo. Por quase 20 anos, realizou o cenáculo de Nossa Senhora em sua residência, com um assíduo grupo de oração, toda quarta-feira à noite. A casa era um relicário, um santuário, decorada com quadros, estátuas, imagens de santos e anjos. Havia uma capela de paredes azuis, com desenhos de estrelas e luas, e no altar a Virgem de Fátima.
Todo o acervo sacro foi oferecido aos amigos e aos fiéis do grupo de oração. A família permitiu que cada um levasse algo de lembrança. A mim, coube uma pequena escultura da “Pietá” em mármore branco, uma peça de rara beleza. Há um altarzinho aqui em casa, com porta-retrato do meu lindo, e a coloquei ali. A Mãe dolorosa carrega nos braços o Filho morto. Uma cena estática, uma representação inconsútil, como sólidos e íntegros serão os amores dos corações partidos.
O segundo velório foi na semana passada, de um amigo querido que residia aqui no meu condomínio, numa chácara próxima à minha. Estava nos setenta, recentemente completados. Forte e dinâmico. Tricolor roxo,assim que se mudou para cá, mandou colocar o emblema são-paulino no portão de entrada da casa. Quando alguém perdido pelo caminho vinha nos perguntar onde ficava a sua chácara, era só explicar “é a que tem o emblema do São Paulo, logo ali”. Seu corpo foi velado envolto pela bandeira do clube bem amado.
Ele cultivava uma horta dessas bem verdinhas, os canteiros geometricamente ordenados, com aquela ruazinha entre eles, uma beleza. Dizia que a produção da horta era muito boa, ele e esposa não davam conta de consumir tudo; então, saía de carro a distribuir verduras aos amigos. Deixava regularmente uma sacola pendurada no nosso portão. Mandava um pouco de tudo: salsinha, cebolinha, chicória, alface roxa, alface verde, rúcula, couve, almeirão novinho, hortelã, erva-doce, e algumas variedades exóticas, que eu ligava para saber o que eram.
Muitas vezes, fui até lá – ligando antes, claro –domingo de manhã, quando resolvia fazer aquela macarronada com molho de tomate e manjericão. Ele se postava de pé na calçada, esperando. “Entra!”. E a gente tinha mesmo de chegar até a horta, enquanto ele ia apanhando o manjericão fresco. Além de um bom punhado das folhas cheirosas, eu ainda ganhava uma sacola de mexericas ou de limões.
A horta vai sentir saudades dele. Não sabemos se a esposa, nossa amiga querida, vai continuar ali. Há pessoas que não se sentem bem de permanecer na mesma casa, mudam-se no dia seguinte. Consegui superar isso e fiquei morando sozinha em minha chácara, sentindo um amor imenso por tudo e pelas lembranças do meu lindo. Minha mãe sempre dizia que é preciso temer os vivos e não os mortos!...
Esta fila ingrata da vida vai andando e pegando uns de surpresa, a outros preparando com antecipado sofrimento. É a tal da Dona Morte chegando, sorrateira, sempre cedo demais. Ninguém estará preparado para ela. É de fato a “indesejada das gentes”.
Um amigo jornalista daqui publicou um texto no site dele – um primor - sobre as conversas de velório. O morto fica lá, mortinho, descansando, e os presentes se esbaldam a bater papo. Deixei meu comentário, aludindo a uma esperança que pode não ser tão descabida: e se muitos de nós não passarmos pela morte? E se existem mesmo os “eleitos da última hora”, já marcados com um selo divino em suas frontes, sementes humanas para habitar a Nova Terra e contemplar os Novos Céus?
Estes sinais da natureza, estes “avisos” tremendos que a Terra está nos dando, não seria o prenúncio das dores de parto que vão gerar o novo tempo? Deixo a pergunta no ar. Só Deus conhece a resposta. A nós, especuladores do sonho, cabe-nos juntar as mãos e rezar.
Marisa Bueloni
A vida tem uma fila implacável e ela anda. Já fui a dois velórios este ano. Os bons vão indo embora e tem um montão de vaso ruim ficando. Dona Morte não brinca em serviço. Ela organiza o funesto cadastro e, um a um, os nossos amados vão saindo de cena.
Sinto uma agonia mortal nos velórios. Não me conformo. Jamais irei me conformar. Ô hora dura!... Hora dolorosa. Que triste é receber o telefonema avisando o falecimento. Mesmo sabendo do estado grave da pessoa em questão e tendo-a visitado, seja em sua casa ou no hospital, o desfecho sombrio é sempre uma dor sem nome.
Jovem ou idoso, com saúde ou sem saúde, todos se vão.É uma regra impiedosa. Num dos velórios a que fui, depois de encomendar o corpo, o padre saiu dizendo: “É a fila da vida...ninguém escapa”. Diante desta impotência, sucumbimos mais ou menos consolados, mais ou menos convencidos, mas sempre tristemente inconformados.
O primeiro velório foi no mês passado. Uma amiga querida e muito especial. Estava nos seus oitenta, mas era uma mulher magnífica, extraordinária, que fará falta ao mundo. Por quase 20 anos, realizou o cenáculo de Nossa Senhora em sua residência, com um assíduo grupo de oração, toda quarta-feira à noite. A casa era um relicário, um santuário, decorada com quadros, estátuas, imagens de santos e anjos. Havia uma capela de paredes azuis, com desenhos de estrelas e luas, e no altar a Virgem de Fátima.
Todo o acervo sacro foi oferecido aos amigos e aos fiéis do grupo de oração. A família permitiu que cada um levasse algo de lembrança. A mim, coube uma pequena escultura da “Pietá” em mármore branco, uma peça de rara beleza. Há um altarzinho aqui em casa, com porta-retrato do meu lindo, e a coloquei ali. A Mãe dolorosa carrega nos braços o Filho morto. Uma cena estática, uma representação inconsútil, como sólidos e íntegros serão os amores dos corações partidos.
O segundo velório foi na semana passada, de um amigo querido que residia aqui no meu condomínio, numa chácara próxima à minha. Estava nos setenta, recentemente completados. Forte e dinâmico. Tricolor roxo,assim que se mudou para cá, mandou colocar o emblema são-paulino no portão de entrada da casa. Quando alguém perdido pelo caminho vinha nos perguntar onde ficava a sua chácara, era só explicar “é a que tem o emblema do São Paulo, logo ali”. Seu corpo foi velado envolto pela bandeira do clube bem amado.
Ele cultivava uma horta dessas bem verdinhas, os canteiros geometricamente ordenados, com aquela ruazinha entre eles, uma beleza. Dizia que a produção da horta era muito boa, ele e esposa não davam conta de consumir tudo; então, saía de carro a distribuir verduras aos amigos. Deixava regularmente uma sacola pendurada no nosso portão. Mandava um pouco de tudo: salsinha, cebolinha, chicória, alface roxa, alface verde, rúcula, couve, almeirão novinho, hortelã, erva-doce, e algumas variedades exóticas, que eu ligava para saber o que eram.
Muitas vezes, fui até lá – ligando antes, claro –domingo de manhã, quando resolvia fazer aquela macarronada com molho de tomate e manjericão. Ele se postava de pé na calçada, esperando. “Entra!”. E a gente tinha mesmo de chegar até a horta, enquanto ele ia apanhando o manjericão fresco. Além de um bom punhado das folhas cheirosas, eu ainda ganhava uma sacola de mexericas ou de limões.
A horta vai sentir saudades dele. Não sabemos se a esposa, nossa amiga querida, vai continuar ali. Há pessoas que não se sentem bem de permanecer na mesma casa, mudam-se no dia seguinte. Consegui superar isso e fiquei morando sozinha em minha chácara, sentindo um amor imenso por tudo e pelas lembranças do meu lindo. Minha mãe sempre dizia que é preciso temer os vivos e não os mortos!...
Esta fila ingrata da vida vai andando e pegando uns de surpresa, a outros preparando com antecipado sofrimento. É a tal da Dona Morte chegando, sorrateira, sempre cedo demais. Ninguém estará preparado para ela. É de fato a “indesejada das gentes”.
Um amigo jornalista daqui publicou um texto no site dele – um primor - sobre as conversas de velório. O morto fica lá, mortinho, descansando, e os presentes se esbaldam a bater papo. Deixei meu comentário, aludindo a uma esperança que pode não ser tão descabida: e se muitos de nós não passarmos pela morte? E se existem mesmo os “eleitos da última hora”, já marcados com um selo divino em suas frontes, sementes humanas para habitar a Nova Terra e contemplar os Novos Céus?
Estes sinais da natureza, estes “avisos” tremendos que a Terra está nos dando, não seria o prenúncio das dores de parto que vão gerar o novo tempo? Deixo a pergunta no ar. Só Deus conhece a resposta. A nós, especuladores do sonho, cabe-nos juntar as mãos e rezar.
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