Tempo
de Trocar as Lentes
Meus óculos começam a me trair. Quando comecei a usá-los, passado o mal estar do primeiro dia, a lente multifocal não demorou a me encantar. A capacidade de enxergar para longe, meia distância e perto era um avanço e tanto. Cores, que eu julgava belas, ganharam um novo viço. O conforto parecia durar para sempre..., mas passou. Assim como não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe, dificilmente as lentes de um par de óculos servirão por muito tempo. E nem falo dos riscos, embaços, trincas; essas coisas próprias das coisas que com o tempo se inutilizam. Falo do avanço da idade, do cansaço da vista; da impressão cada dia mais nítida de que as letras muito pequenas vão perdendo a sua nitidez. Já não basta configurar a tela do celular ou aplicar zoom ao monitor do computador. Eu preciso de novos óculos. Preciso de lentes nas quais eu possa confiar. Envolvido nessas reflexões, meus pensamentos me levam ao movimento que fazemos todos os anos, nesses dias de janeiro, quando relembramos os horrores do Holocausto, lamentando pelas vidas que se perderam, celebrando os que sobreviveram (testemunhas oculares da história, muitos dos quais ainda vivem entre nós) e insistimos em chamar a atenção da sociedade para que a persistente brasa do nazismo não volte a atear fogo a um mundo já tão dividido, fragmentado e maculado pela injustiça. De certa forma, refletir sobre a Shoá (termo hebraico para a grande tragédia) é insistir em focar em um tema para o qual a sociedade como um todo não quer olhar. Há quem negue; há quem saiba que ocorreu mas se negue a olhar; e há ainda quem passará por essa vida sem nada ver, porque disso nada sabe e talvez seja até abençoado pela sua ignorância dos fatos. Há farta documentação em vídeos, fotos, registros documentais, livros publicados, evidências geográficas... Mas, num mundo pós moderno afogado pelo excesso de informações e estímulos, corre-se o risco de não levar em grande conta a relevância do “relembrar para não repetir”. O foco geral está no agora, e muito mais no amanhã; e ainda assim um foco nas coisas frívolas, passageiras, momentâneas. Não há memória. As pessoas, na verdade, não querem nem ver, para não ter que lembrar. Pois então, que não olhem. E não olhando, não vejam. Escolham a vista embaçada, obstruída, velada. Eu optei por enxergar! Quero ver de longe! Lançar minha vista aos primórdios do chamado patriarcal, quando D’us visitou a Abraão e o desafiou a contar estrelas e grãos de areia para “dar uma ideia” do que seria a sua descendência. Um povo que enfrentou egípcios, cananeus, babilônicos, assírios, persas, gregos, romanos e otomanos... E ainda vive! Quero enxergar à meia distância; alçar meus olhos há oitenta anos quando Auschwitz foi libertado pelos russos e o “Povo do Livro” (o que restou dele) partiu para povoar o mundo e se estabelecer na terra que foi prometida a nossos primeiros pais. E quero enxergar de perto, para ver que a ameaça a tudo quanto se chame de diferente está cotidianamente às portas. Como dizemos no hebraico, “Am Israel Chai” – “O Povo de Israel Vive”; mas sem uma visão multifocal onde se contemple o passado remoto, o passado recente e o presente; não pode haver futuro. Quero lentes que me façam sensível a ver que a luta dos judeus pela sua própria existência é também a luta de ciganos, pessoas com deficiência, LGBTs, negros, devotos das religiões de matriz africana... E tantos quantos lutem cotidianamente pelo simples direito de ser. Não se pode fechar os olhos para isso. Dessa perspectiva depende o resgate da memória, e o projeto de um futuro com mais igualdade. Vamos trocar as nossas lentes?
*Mauricio Ribeiro é jornalista e
coordenador da Associação Memorial Amigos de Sião
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