As reuniões do Grupo Oficina Literária de Piracicaba são realizadas sempre na primeira quarta-feira do mês, na Biblioteca Municipal das 19h30 às 21h30

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Com o escritor Ignacio Loyola Brandão

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Reunião na Biblioteca

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

O PÉ GRANDE E O AZULÃO




                                                           
LUZIA STOCCO


            – O Pé Grande morreu! O Pé Grande morreu! – gritava uma garotinha correndo na rua.
            Ele, o morto, o Pé Grande, não podia acreditar que haviam aberto a portinhola da gaiola e, seu azulão, tão amado, escapara. Mas de que adiantava lembrar-se disso agora?! O cortejo prosseguia. Carroças, charretes, muitos a pé, seguiam em direção ao centro da Vila Bota Grande. Ninguém ia a sua frente. Pela primeira vez todos estavam atrás dele – até a esposa do prefeitinho Batias. Pezão era o primeiro – prioridade de morto – atentou ele. E, além de soltarem seu pássaro, jogaram fora sua única garrafa de pinga. Agora, continuava com sua meia furada, tão velha. Pediu, na Hora H, que o preparassem para o enterro com a mesma meia, a única que lhe cabia. Pé Grande, filho de coronel falido, também falido, temido pela fama dos pés.
 No passado, até arqueólogos renomados confundiram-se com o dito achado de marcas ressecadas dos seus passos no solo. Então fizeram um ágil pedido para concessão daquele sítio arqueológico seguido de frustração dos estudiosos.
Sua vida social e religiosa era limitada, pois lá se vedavam a entrada de pessoas descalças nos recintos, ainda mais um senhor descalço. Artífice algum acertava as medidas de uma botina ou de um chinelo que fosse. Às vezes, arrastava um chinelão por onde ia, expondo o calcanhar ao léu, mas o problema foi mesmo a unha encravada! Quem se prontificava a desencravá-la?  Até o nome do vilarejo lhe cabia. Por ironia: Bota Grande.  “Para a unha encravada o bom é jogar álcool temperado com ervas e sal grosso, ou, pinga! Mas qual?!? A minha esposa jogara fora a garrafa e, provavelmente, meu pássaro Azulão escapulira por suas mãos atrevidas também”, matutava Pé Grande.
            Alguns jovens o chamavam de "o patinador". O vizinho espanhol o chamara numa ocasião para matar, à patada, uma cobra em sua cozinha. Ele não foi. “Que se salvem as cobras, oras bolas!” Pé Grande tinha outra identidade: Agenor. E um sobrenome bem propício: Sola Quente. As trilhas de saúvas fugiam dele, mas quantas delas foram dizimadas por uma só pisada, no meio do mato ou na estrada, e olhe que ele tinha boa visão! Porém, lembre-se, cara leitora e leitor, ele não era um gigante, apesar dos pés.
            Agora no final, o cortejo fúnebre aumentava. Todos se espremiam para espiar sua expressão, quer dizer, a posição dos ditos cujos – rijos, brancos, com meias rasgadas, sobressalentes para fora do caixão. Uma fotógrafa destemida pediu à família para fotografar os pés sem as meias – Pé Grande não tivera tempo de cerzi-las – A tal fotógrafa queria uma foto exclusiva. A família pequena: esposa, irmão, irmã, uma sobrinha, um sobrinho e o velho Azulão (que voltara para despedir-se, tinha-o desde a mocidade) não deram permissão; aí já era expor demais o pobre homem.
Algumas crianças choravam vendo alguns adultos chorando sobre o caixão. Alguns jovens choravam, pois  sentiriam falta  da  única atração  da Vila;   velhos    se entristeciam pelo vácuo no
banco sob as mangueiras da pracinha, onde ele era o protagonista dos bate-papos. A jovem sobrinha não fora ao cortejo por vergonha do tio, e nem era tão dada com ele. Um dia, há tempo, ele chutou a bunda dela por brincadeira e imaginem onde ela foi parar.
Ainda não acabara o enterro e alguns, os mais ansiosos, já almejavam uma nova distração, algo diferente para a região. Por que o singular, o diferente, incomoda? Somos todos singulares, mas a noção de alteridade passa longe.
            Ao fechar-se o caixão um vulto infundiu-se junto ao corpo inerte: "se estive preso engaiolado a vida toda de que me serve a liberdade agora que sou velho? É que nem aquela velha lei humana, a dos Sexagenários, que em 1871 o Império libertou os escravos acima dos sessenta anos livrando os fazendeiros da carga desses velhos, colocados ao relento, se chegassem vivos até aí!! Piada de mau gosto, isso sim! Comigo a coisa é diferente.
 – Não quero morrer sozinho e abandonado, vou com o Pé Grande – decidiu o pássaro. Ninguém suspeitou. De repente, a janela do caixão, semifechada devido a curta envergadura dos pés começou a tremer. Abriram assustados e nada. De novo e de novo! Jogaram o caixão no buraco e todos correram desesperados. O pássaro bicava os pés do amigo, que sempre teve excessiva cócega e aquele nunca soube, e se remexia. Era o último agrado, a despedida. Deitou-se com as asas bem acomodadas, no bolso do paletó e esperou, esperou.

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