Páginas

quinta-feira, 18 de junho de 2020

A RUIVA DOS GATOS




(Em homenagem à poetisa Maria Iraci Pinto falecida recentemente)
Ivana Maria França de Negri

Conheci essa guerreira há cerca de vinte anos, quando eu fazia trabalho voluntário numa ONG de proteção aos animais.
Chegou na sede da entidade uma cartinha muito bem escrita, com caligrafia de letra redonda e bonita, de uma moça pedindo ajuda para castrar seus gatos porque era cadeirante e não tinha condições financeiras. Eram muitos gatos que ela recolhia das ruas.
Foi assim que surgiu nossa amizade. Fiquei sabendo que escrevia poesias também, lindos poemas que foram publicados nos jornais por vários anos e muitos acabaram em livros.
Os temas de seus escritos eram sempre sobre animais, sobre pessoas com deficiências e seus direitos, e ela era impulsionada por uma sede de justiça muito grande, sempre abraçando causas sociais, defendendo seus pontos de vista com ardor, e também sabia ser crítica na medida certa.
E eu a reencontrei muitos anos depois no Lar dos Velhinhos de Piracicaba...
Os mesmos cabelos ruivos, os lindos olhos verdes e o ímpeto de mudar o mundo para melhor. Um derrame recente tirou-lhe os movimentos das pernas e de um dos braços. Com o outro conseguia realizar pequenas tarefas. Já não conseguia escrever, mas as ideias fervilhavam em sua cabeça e ela sonhava escrever um novo livro, que poderia ditar para alguém. E seria homenageando os moradores do Lar.
Essa grande batalhadora passou por inúmeros percalços na vida mas jamais se deixou abater.
Viver é lutar sempre, cada dia enfrentando um dragão diferente.
E nessa arte, ela foi mestra!
Um grande exemplo de mulher guerreira, que amou a vida apesar de tudo.
Descanse em paz, querida Iraci, agora livre das amarras do corpo, terá asas para voos mais altos...

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Almas gêmeas



Cassio Camilo Almeida de Negri

O casal de velhinhos sentado na sala no dia frio, conversava desanimadamente por entre as dentaduras já folgadas nas gengivas murchas, tão murchas, que a porção superior dos dentes artificiais já não parava no lugar.
Via-se um movimento lateral incessante das mandíbulas dos dois nos intervalos das conversas, que um observador não entenderia a razão.
A pele tal qual colcha de crochê cobria aqueles corpos físicos, já quase em fase de transição para a dimensão etérea.
As mãos estavam cheias de manchas roxas, devido a fragilidade dos vasos. Ele noventa e nove anos, ela noventa e cinco.
Nem mais assistiam televisão, há alguns meses queimada, pois não tinham dinheiro para consertá-la.
Começam a conversar, lembrando que àquela hora da Ave Maria, já havia começado a novela das seis, e eles, sem poder assistir. A singeleza da novela de época, levou os pensamentos dos dois a relembrar os velhos tempos passados, os beijos apaixonados, que hoje, nem pensar, ainda mais com as dentaduras soltas. Podiam até engasgar, quem sabe, até morrerem asfixiados.
Entre lembranças e risos, as mentes foram regredindo no tempo.
O frio aumentou, seus pés estavam gelados.
Lembraram as noites de namoro no portão, no banco branco do jardim da praça, o avanço dele, casa adentro, eles no sofá da sala. Voltaram no tempo e lembraram do primeiro baile quando se conheceram. As pedrinhas na janela para acordá-la e lembrar que ele por ali passava...o primeiro beijo...
A noite esfriou ainda mais, tentaram levantar, mas os corpos pesados, sem forças e frios, já não saiam do lugar, por mais que se esforçassem.
Num ato de desespero e esforço, como em um parto difícil, saltam para fora dos corpos e se sentem novamente no calor da juventude.
Somente o gato deitado sossegado no tapete, levantou a cabeça e ficou arrepiado, assustado vendo os dois novamente jovens, de mãos dadas, felizes, correndo em direção a um cone de luz brilhante.
E o gato?Ah, o gato velho,  ficou sem dono...


A velha do rio



Olivaldo Júnior

Porque a vida é uma forma inconstante

Naquela curva do rio,
entre as dúvidas e as dádivas,
uma velha, estranha,
estranha e sábia,
se assenta.

Não sabe quando vai chover,
nem quando o sol
nem nunca vai brilhar,
mas, velha,
é honrada por todos.

Muitos vêm de longe,
muito longe, só para vê-la:
novelo nas mãos,
amor em seus olhos
e um xale de lã,
tão descuidado, nas costas...

Tem hora que, só de vê-la,
só de olhá-la assim,
tão absorta em si mesma,
se lembram
nem sabem ao certo
de quê,
mas, talvez por isso,
talvez por isso mesmo,
sarem, se recuperem

e apenas, apenas por isso,
aprendam
a estar.