Nas décadas de 50 e 60 era muito comum as famílias terem um piano num
lugar privilegiado da casa, principalmente quem tinha filhas. Fazia parte da
educação aprender um instrumento musical.
Nós
tínhamos dois pianos alemães. Um de cor clara, marfim, que era da minha tia, e
outro de cor mais escura, mogno, da minha mãe.
Eu
e minhas duas irmãs tínhamos aulas particulares em casa. Lembro-me das
professoras Edwiges, Sílvia e também tive aulas com dona Gerdes, na casa dela,
que morava a um quarteirão da nossa.
Quando minha tia ficou
viúva, os pianos emudeceram, éramos proibidas de tocar. O luto impedia qualquer
demonstração de felicidade, já que música é pura alegria! Aos poucos tudo foi
voltando ao normal, e os pianos, trancados a chave, foram liberados para terem
suas teclas dedilhadas novamente.
Além
das clássicas obrigatórias, eu gostava de tocar músicas “de ouvido”, as da
Bossa Nova, Jovem Guarda e até dos Beatles.
Eram
tempos em que as pessoas se visitavam frequentemente. Lembro-me que entre
bolos, biscoitos e café, as visitas também degustavam nossas músicas, num
concerto exclusivo. Dona Carolina, comadre da minha mãe, sempre ia nos visitar e gostava de ouvir
nossas pequenas sinfonias.
A
casa da minha futura sogra ficava em frente à casa dos meus pais. Eu tinha 13
anos e me lembro que abria o postigo de vidro da porta da frente e tocava a
música Tema de Lara, do filme Doutor Jivago, quando meu paquera de 17 anos (o
Cássio, que veio a ser meu marido) voltava das aulas do Sud Mennucci. Nunca
havíamos conversado, mas a música que eu tocava ao piano nos unia, pois havia
dias em que eu não tocava e ele passava assobiando a mesma música. Era um encontro
de almas, sem conversas ou toques. Tudo de longe. Antigamente se dizia amor
platônico, hoje dizem que é virtual.
Namoramos,
nos casamos e fomos morar em Brasília. Fiquei longe das teclas por um bom
tempo, atarefada com os filhos que chegavam, e quando vinha para Piracicaba,
mal tinha tempo de dedilhar algumas músicas.
Minha
tia dizia que o piano dela um dia seria meu e o da minha mãe,
ficaria para minha irmã caçula, já que a mais velha ganhou um do
marido, pois nunca deixou de tocar, e em sua casa todos têm o dom musical.
Minha
tia faleceu e treze anos depois faleceu minha mãe. E os pianos
ficaram na casa do meu pai por mais onze anos, sem que ninguém tivesse coragem
de tirá-los de lá, pois faziam parte dela. O piano escuro que ficava na sala de
jantar serviu nesses anos todos de “comunicação” entre os filhos. Tudo era
deixado “no piano”. Onde estão as chaves? Em cima do piano! Onde estão as
contas para pagar? Sobre o piano! Lembranças de viagens eram deixadas sobre o
piano com os nomes. Assim como os ovos de Páscoa deixados sobre o
piano, presentes de aniversário, de Natal, recados, flores. Era um móvel
democrático que servia para tudo, menos para ser tocado...
Meu
pai partiu em meados do ano passado. Resolvemos chamar um especialista para
avaliar a situação dos pianos a fim de restaurá-los. Ele chegou com sua maleta, como
se fosse um médico e deu o diagnóstico: não há a mais remota
possibilidade de serem restaurados. Os cupins tomaram conta da madeira e a ferrugem
das partes metálicas. Ficaria muito mais dispendioso restaurar do que comprar
um novo.
Tudo
tem seu tempo na face da Terra, diz o Eclesiastes, e o tempo desses pianos
passou... Agora, só o catacacareco saberá o destino desses pianos. Para nós,
restarão apenas os acordes mágicos de um tempo feliz da infância e juventude
ecoando em nossos ouvidos e para sempre em nossa memória...
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