LUZIA STOCCO
– O
Pé Grande morreu! O Pé Grande morreu! – gritava uma garotinha correndo na rua.
Ele,
o morto, o Pé Grande, não podia acreditar que haviam aberto a portinhola da gaiola e, seu azulão,
tão amado, escapara. Mas de que adiantava lembrar-se disso agora?! O cortejo
prosseguia. Carroças, charretes, muitos a pé, seguiam em direção ao centro da
Vila Bota Grande. Ninguém ia a sua frente. Pela primeira vez todos estavam
atrás dele – até a esposa do prefeitinho Batias. Pezão era o primeiro –
prioridade de morto – atentou ele. E, além de soltarem seu pássaro, jogaram
fora sua única garrafa de pinga. Agora, continuava com sua meia furada, tão
velha. Pediu, na Hora H, que o preparassem para o enterro com a mesma meia, a
única que lhe cabia. Pé Grande, filho de coronel falido, também falido, temido
pela fama dos pés.
No passado, até arqueólogos renomados
confundiram-se com o dito achado de marcas ressecadas dos seus passos no solo.
Então fizeram um ágil pedido para concessão daquele sítio arqueológico seguido
de frustração dos estudiosos.
Sua vida social e religiosa era
limitada, pois lá se vedavam a entrada de pessoas descalças nos recintos, ainda
mais um senhor descalço. Artífice algum acertava as medidas de uma botina ou de
um chinelo que fosse. Às vezes, arrastava um chinelão por onde ia, expondo o
calcanhar ao léu, mas o problema foi mesmo a unha encravada! Quem se
prontificava a desencravá-la? Até o nome
do vilarejo lhe cabia. Por ironia: Bota Grande.
“Para a unha encravada o bom é jogar álcool temperado com ervas e sal
grosso, ou, pinga! Mas qual?!? A minha esposa jogara fora a garrafa e, provavelmente,
meu pássaro Azulão escapulira por suas mãos atrevidas também”, matutava Pé
Grande.
Alguns
jovens o chamavam de "o patinador". O vizinho espanhol o chamara numa
ocasião para matar, à patada, uma cobra em sua cozinha. Ele não foi. “Que se
salvem as cobras, oras bolas!” Pé Grande tinha outra identidade: Agenor. E um
sobrenome bem propício: Sola Quente. As trilhas de saúvas fugiam dele, mas
quantas delas foram dizimadas por uma só pisada, no meio do mato ou na estrada,
e olhe que ele tinha boa visão! Porém, lembre-se, cara leitora e leitor, ele
não era um gigante, apesar dos pés.
Agora
no final, o cortejo fúnebre aumentava. Todos se espremiam para espiar sua
expressão, quer dizer, a posição dos ditos cujos – rijos, brancos, com meias
rasgadas, sobressalentes para fora do caixão. Uma fotógrafa destemida pediu à
família para fotografar os pés sem as meias – Pé Grande não tivera tempo de
cerzi-las – A tal fotógrafa queria uma foto exclusiva. A família pequena:
esposa, irmão, irmã, uma sobrinha, um sobrinho e o velho Azulão (que voltara
para despedir-se, tinha-o desde a mocidade) não deram permissão; aí já era
expor demais o pobre homem.
Algumas crianças choravam vendo
alguns adultos chorando sobre o caixão. Alguns jovens choravam, pois sentiriam falta da
única atração da Vila; velhos
já se entristeciam pelo vácuo no
banco sob as mangueiras da pracinha, onde ele era o
protagonista dos bate-papos. A jovem sobrinha não fora ao cortejo por vergonha
do tio, e nem era tão dada com ele. Um dia, há tempo, ele chutou a bunda dela
por brincadeira e imaginem onde ela foi parar.
Ainda não acabara o enterro e
alguns, os mais ansiosos, já almejavam uma nova distração, algo diferente para
a região. Por que o singular, o diferente, incomoda? Somos todos singulares,
mas a noção de alteridade passa longe.
Ao
fechar-se o caixão um vulto infundiu-se
junto ao corpo inerte: "se estive preso engaiolado a vida toda de que me
serve a liberdade agora que sou velho? É que nem aquela velha lei humana, a dos
Sexagenários, que em 1871 o Império libertou os escravos acima dos sessenta
anos livrando os fazendeiros da carga desses velhos, colocados ao relento, se
chegassem vivos até aí!! Piada de mau gosto, isso sim! Comigo a coisa é
diferente.
– Não quero morrer sozinho e abandonado, vou
com o Pé Grande – decidiu o pássaro. Ninguém suspeitou. De repente, a janela do
caixão, semifechada devido a curta envergadura dos pés começou a tremer.
Abriram assustados e nada. De novo e de novo! Jogaram o caixão no buraco e
todos correram desesperados. O pássaro bicava os pés do amigo, que sempre teve
excessiva cócega e aquele nunca soube, e se remexia. Era o último agrado, a
despedida. Deitou-se com as asas bem acomodadas, no bolso do paletó e esperou,
esperou.
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