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quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

A MENINA MÁ E O SAPO

                                  

                                                                         Eloah Margoni


    Quantas circunstâncias ou momentos nossos são constrangedores, vergonhosos!  Algumas de tais situações ou cenas ficam profundamente guardadas no subconsciente e é mais do que certo nunca virem a público nem aparecerem nas redes sociais, sendo tal o mais prudente e sensato. Essas são meios e locais para autoafirmações.
   Ignorantes e cultos, falsos, vazios, limitados, honestos e desonestos, grandes ou pequenos falamos maravilhas sobre nós. Somos os depositários mores de qualidades, de fascínios, sejamos lá quem formos e por mais medíocres e comuns que, de fato, o sejamos. Mesmo entre os diferenciados, pequenos desastres particulares e derrotas individuais, maldições até surgem, tudo devidamente ocultado, pois não há justificativa para confissões ou autodepreciações públicas. Seria essa a pior das tolices, exceto numa única circunstância a meu ver: se as palavras puderem talvez um dia se tornar literatura e, portanto, arte.  Jean Genet e seus piolhos concordariam com isso, assim como Fernando Pessoa e as tertúlias. Bukowski e suas garrafas também, muito. Quanto à Anaïs Nin, teria de consultá-la...  
     Acreditem se quiserem, já fui noiva, o que por si só é estado meio ridículo. Não simples alianças de compromisso como quando estamos apaixonados, mas aquelas de ouro, após formalidade em que o moço pedia a jovem em casamento e sempre havia grande ou pequena festa. Tinha, à época, quase dezoito anos. Lembro-me do vestido, pesado, de uma cor que se cobrem os santos na quaresma, cor absurda e densa que combinava com o momento. Mas como chegara eu a ele? Quando mal completados dezessete entrara na faculdade, minha primeira. Era tímida, estudiosa, protegida, criada de acordo com os princípios conservadores vigentes. Deles não gostava, confesso, mas corri seriamente o risco de nisso me enredar se o casamento tivesse vingado. Não vingou, graças ao sapo, assim denominarei o ex-noivo, e não apenas pelo simbolismo das fábulas mas porque realmente parecia-se com um, embora eu nada tenha contra os batráquios. Ele, baixote e feioso, contava vinte e sete anos. Escolheu-me não só por minha ingênua pureza mas também (e hoje creio nisso) por ser de família conhecida na cidade, mesmo sem grandes posses. Do último detalhe ele não sabia ao certo. O moço, que vinha de fora e estava na mesma turma, cercou-me. Era muito bajulador, especialmente dos professores, desejava chegar a uma cadeira da universidade penso eu e, assim, bajulava. A mim também. Elogiava-me sempre, mesmo quando nem deveria.  Bonita era qualquer coisa que eu usasse, mesmo se feia, elegante mesmo se troncha e, conquanto tratasse melifluamente a todos, era maledicente. Uma vez brigamos por ter ele falado mal de certa mulher que pouco conhecia, pelo comportamento sexual desta. Mesmo que tivesse algo a ver com ela, isso não se faz. Foi naquele momento que o noivo começara-me a ficar insuportável e eu “feminista”?  Não sei; contudo continuei covarde, pois muito reservada, via apoio em ter alguém a meu lado, e esse foi o que chegara antes.
      A coisa prosseguiu e ... casamento marcado. Nesse meio tempo ele, felizmente, arrumou outra que o interessou mais, rompeu o noivado usando certos artifícios para tal, mudou-se de cidade e de curso. Apesar de o fato ter-me afetado na ocasião, não fiz grandes protestos e nunca voltei a procurá-lo. Por motivos pouco corajosos, fiquei transtornada de início. Horrorizava-me estar no “centro de atenções”, dos comentários, das fofocas que corriam a cidade de cá para lá. Assustava-me muito ainda a vida universitária, mas a abracei em seguida.
                Anos e anos intensos e repletos rolaram. Há seis deles escreveu para meu endereço eletrônico (que toda gente descobre quando quer!), já bem mais velho. Parabenizava-me pelos livros editados e pelas poesias, queria adquirir cinco exemplares do romance Babel, dizia. Contava-me de seus familiares, que eu conhecera mas dos quais pouco me lembrava. Mandou número de telefone, pedindo que eu ligasse. Acrescentou que tinha uma filha a qual viria viver com ele, pois sofria de artrite grave. O que tinha eu com tudo isso? Adivinharam: nada. Coisa alguma a esse respeito me interessaria se, durante tantos anos, quando raramente me recordava dele era só para ter horror à ideia de nos termos casado, e pior, de ter tido eu filhos. Claro que nunca lhe telefonei e, apesar de responder de modo frio a mensagem, abstive-me de ser cruel. Disse apenas que só depois dele sumir começara a ser eu mesma, que estava admirada do contato e me punha a imaginar que, para fazê-lo, ele deveria ter algo muito interessante a colocar. Não deve ter sido o que o gajo esperava e, assim, calou-se.
     Há poucas semanas, por mero acaso, ouvi falar da sua morte, e esta informação se confirmou. Falecera em 2013, de certa patologia. Pude então encontrar nova razão para aquele contato que fizera. Provavelmente por puro interesse em si mesmo, pois já estava doente, na altura, e eu na área médica. Estranho foi o ataque de raiva, intenso mas ao menos não persistente, que a notícia do falecimento me causou.  E do que teria eu tanto ressentimento, afinal? Isso ensejava análises.
      A zanga era comigo mesma.  Lamentava não ter sido ainda mais dura anteriormente com ele. Mas por que motivo, afinal? Mágoa pueril pela antiga rejeição acompanhara-me? Não, jamais. A ojeriza à lembrança de ter sido noiva do sapo sempre existiu. Então o que seria? Ah! sim, não fora eu a romper o risível noivado, e isso era algo doloroso de saber! Minha salvação dependera dos caprichos do outro, e tal desaguava na simples vaidade, no orgulho? Só à primeira vista era assim, conclui. Dissecando melhor, via não ser essa a verdade total; havia a noção de um perigo real, temor por minha única e (à época) jovem vida. Era medo tardio intenso por um passado que nunca existiu mas poderia ter existido, senso de responsabilidade sobre as escolhas más e sobre entrar em fria. Com que então, dependera eu somente do sinuoso “destino” para escapar da cilada?  Porém vejamos mais ainda o assunto. Presa de um mistificador pleno de conversa doce estava eu, mas causei complicações ao ver suas características hipócritas.  Tornara-me ainda mais fechada e nunca ia visitar as casas que ele sugeria para alugar; detestava as fachadas de todas... Enfim, quero crer que criara um ambiente bem propício para a não efetivação do casório. Mas mesmo que assim não fosse, por que não estar feliz só pela interferência salvadora do acaso? Por mérito, sorte ou um lance de dados, estava sã e salva!
      Alguns dirão que não existe acaso, outros garantem que sim. Sobre cada tópico psicológico ou derivação colocada teríamos muitas digressões a fazer. Ensaios, conjecturas, crônicas e pequenos contos maçantes poderiam ser escritos, num desdobrar sem fim que interessaria a alguns ou embotaria a mente de outros, mesmo dos melhores teóricos. Mas, provavelmente tudo soaria como um complexo e extenso rol de coloridas inutilidades, como de sólito.

       

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