Clarice Villac
Hoje, na aula de Português, com alunos de idade média entre 10-11 anos, tinha no livro didático uma HQ com o Garfield sendo malcriado com o John, e em seguida outra HQ com Gatinho e Gatinha (esses personagens eu não conhecia) em que a Gatinha tinha colocado o Harry, depois de dar banho nele para lavar de uma grande bagunça com tintas coloridas que tinha feito pelo chão, no microondas, ao que o Gatinho escandalizado sai correndo para salvá-lo e fala “mas ele é só uma criança”, e a Gatinha responde rindo: “coloquei no médio...”.
Comecei a conversar com os alunos sobre isso, dizendo que o Garfield é meio malvadinho e egoísta, apesar de eu gostar muito de gatos...
E ia continuar a conversa, quando um menino falou que não gostava de gatos, outro disse que um primo tinha jogado um gatinho na fossa, outro disse que era verdade, e começaram a falar vários ao mesmo tempo, contando casos assim, ao que pedi para todos pararem de falar isso. E um menino, que estava de mal humor hoje, falou que gato é para matar mesmo.
Bom, daí perdi a calma, falei que isso é crime, que dá de um a três anos de cadeia, que se for menor de idade o pai é que vai preso, e etc. e tal.
Contei que trabalhei numa ONG de resgate de animais de rua por vários anos, que por isso tenho tantos gatos em casa, que cada um deles tem uma história triste antes de chegar na minha casa.
Falei para imaginarem o que sente um gatinho nenê, que só sabe miar e mamar na sua mãe. Para imaginarem como se sentiriam se um gigante do tamanho deles os pegasse e jogasse na fossa. E etc. e tal.
Mais um pouco, ia dar o sinal, era a última aula, fim de tarde, falei que podiam guardar o material.
Enquanto eles se aprontavam para ir embora, sentei e fiquei bem triste, e conversei com um menino tranquilo, distraído, sonhador, pisciano, que conheço melhor por ter participado da turma de aulas de reforço de Português que ministrei por três meses no semestre passado, antes de eu ficar com estafa e precisar parar com esse curso.
E Luciano é um menino que consegue salvar borboletas presas, mostrando o caminho de volta com delicadeza (já vi ele fazer isso, nossa escola fica perto de uma mata nativa, as aulas eram de manhã, quando o sol e a brisa entram suaves pelas janelas). E foi campeão do concurso de inventar e lançar foguetes feitos com sucata, que a professora de Ciências realizou no semestre passado. Ele troca algumas letras para escrever, às vezes demora para interpretar ‘adequadamente’ textos escritos, tem dificuldade com o conteúdo de Matemática. Mas tem o olhar brilhante, e considera possibilidades amplas para as coisas, para qualquer coisa. Ao conviver com ele, a gente percebe que ele está chegando neste mundo, mas que passeou muito pela vida eterna afora.
Pois então, conversei com Luciano, e falei que como é possível que tenha gente que, ao ver os outros fazerem maldades, não pense que isso é absurdo, não veja que estão fazendo besteira e que não precisa ser assim! Ele arregala os olhos, com seu ar de quem enxerga muito, e fala “é mesmo, né, professora...” e seus olhos brilham, e eu falo que ele entende isso, e ele diz que sim...
(Na segunda-feira depois da Páscoa, na aula, as crianças estavam falando de quantos ovinhos tinham comido, e me perguntaram, falei que não tinha ganho ovinhos, e não é que ele me aparece com a caixa de bis que ganhou como prêmio no concurso de foguetes, pra dividir comigo depois da aula ?)
No final dessa aula de hoje, duas meninas vieram conversar comigo também, com olhões carinhosos, uma para contar que a avó tinha um gatão preto e branco, a outra para contar que sua gata tinha dado cria na sala, e conversei com elas, sobre a gata, as casas das pessoas, as tocas dos bichos... agora a gata já está numa caixa, num lugar sossegado, a menina falou...
Mas vim para casa chateada e triste... Cheguei, falei para meus gatos e cachorro que o mundo continua difícil...
Sempre me surpreendo, me decepciono quando encontro a maldade em estado puro... em crianças e pré-adolescentes...
Como que ela não pára de renascer? Como que ela se espalha assim sem cerimônia, como se fosse normal?