SAUDADE
Elda Nympha Cobra Silveira
Ele era o mais famoso, o mais genial de todos os artistas plásticos que conheci. Não poderia ser somente meu amigo, porque estes encontros costumam ser marcados com antecedência, por quem já se conheceu há muitas gerações passadas. Essa gente religiosa diz que as cores, em certos dias de chuva, irisam como num passe de mágica e passeiam por longos minutos acima do seu túmulo. Pode ser que esse fenômeno seja uma reverberação das atividades que ele continua exercendo no além. Talvez, na sua sabedoria infinita, Deus o tenha contratado para melhorar o aspecto das nuvens, para colorir algumas regiões do espaço, ou até para realçar as cores do arco-íris!
Ele era o mais amigo, o mais sincero amigo de todos os que já tive. Tomávamos muita caipirinha juntos, nos botecos sem nome da vida. E batíamos longos papos, filosofando sobre a vida, sobre o mundo e os rumos da arte, tão desprestigiada em nossos tempos. Se ele estivesse vivo, com certeza, seria um dos escolhidos para decorar o muro do cemitério, com sua arte colorida, ressaltada de sentimentos e de grande solidão. A solidão que juntos repartíamos. A solidão de sermos duas pessoas diferentes num só corpo. Uma pessoa fadada a ser genial e a ter o seu dom marcado para sempre nas telas do universo, e a outra fadada a sofrer os revezes da vida, a miséria e o preconceito, a indiferença e o desprezo dos artistas mais afamados.
Mas ele, na sua finitude pessoal, no seu desespero cotidiano, era na sua pobreza, na miséria que o rondava, maior que os de renome, majestoso frente à majestade dos poderosos. Grande, imenso na sua humildade negra.
E foi por isso que convivi com ele até a sua morte precoce, sentida, sofrida e inútil.
Pela sua cor escura sempre foi execrado do convívio social, da elite em que fazem parte muitas vezes os que pouco têm para dar, mas lutam para se sobressair pisando naqueles que verdadeiramente tem seus próprios méritos e talentos.
Certo dia estando juntos num enterro e andando pelas ruas do cemitério, com passadas contidas pelo féretro, ele foi destilando sua amargura:
-Tempos atrás nem aqui eu poderia ser enterrado, se fosse no tempo da escravatura. Perceba como as pessoas se afastam de mim, mesmo sendo do mesmo nível intelectual e talento artístico. Não é só a cor mas também a pobreza. Elas são divisoras de águas numa sociedade.
E lagrimas rolaram pelo seu rosto destacando-se na pele escura, era um misto de sofrimento pela perda de um amigo e pela sua desdita, pela sua incapacidade de ser aceito por uma sociedade elitista.
Todos podem dizer que a morte é oportuna, digna e necessária, mas eu digo que ela é uma passagem sofrida, absurda e amarga. E quando entro num cemitério e vejo tanta ostentação, tanta ânsia de engrandecer os mortos, num culto mórbido e doentio, fico pensando se vale mesmo a pena cultuar alguém depois que morre elevando-o com honrarias e homenagens, se ele foi tão vilipendiado, humilhado e ofendido quando vivo.
Mas esse amigo não sabe, ou melhor pode até estar vendo, que nesse cemitério mandei colocar sobre seu túmulo a escultura que ele havia esculpido, onde um anjo negro carrega uma criança branca.
Bem, mas como a vida é cheia de mistérios!
Aquela escultura beirando a guia da calçada, começou a atrair todos que passavam. O olhar daquele anjo negro direcionado para aquela criança em seus braços, diferia dos demais anjos da necrópole, traduzia um infinito amor, despojado de preconceitos onde o pleno amor altruísta se manifestava naquele velar constante pela criança desfalecida em seus braços.
Grandes mestres das artes sentiram toda a força do talento extravasar daquele mármore frio mas esculpido com tanto carinho, parecendo até que foi aquecido por mãos hábeis.
Seu nome agora reconhecido foi catalogado como um gênio do cinzel e das telas. Ficaram sabendo que durante dias e noites o escultor se esfalfou com grande sacrifício, numa ânsia sempre crescente, para vê-lo terminado. Parecia que tinha urgência, e tinha-a mesmo, pois logo após vê-lo pronto, esgotado pelo cansaço deu por terminado também seus dias.
Na ocasião de sua morte, não houve choro nem vela, somente eu e alguns vizinhos fizemos seu enterro. Sempre o achei um homem solitário mas ali sozinho no caixão com as mão calejadas cruzadas no peito, dentro de uma sala vazia, tive noção do que é a solidão, a indiferença, o ostracismo angustiante de se sentir desprezado, um pária na vida .
O anjo negro de olhar pungente começou a atrair o povo do lugar, pois sentiam
a empatia emanada daquele olhar e começaram a pedir graças para saúde das crianças adoentadas.
Deus em sua grande misericórdia deu-lhe notoriedade após sua morte.
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