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terça-feira, 20 de outubro de 2009

O gato que tudo sabe
Olga Martins

-Sente-se e fique à vontade.
-Obrigada.
Mas enquanto agradecia nem poderia imaginar que difícil tarefa seria essa. Não naquele dia.
Depois de algum tempo, a gente se acostuma com as frases feitas e elas sopram tão naturais com uma simples fungada no nariz, ou um suspiro casual.
A conversa correu naturalmente naquele dia. Senta. Levanta. Senta de novo. Um pequeno auxílio aqui, uma gargalhada acolá. Domingo transcorrendo como domingo.
Um jornal e uma poltrona depois do café. Ótimo!Mas o que fazer com aqueles olhos?Penetrantes, insistentes olhos felinos. Junto ao pé da poltrona, patas juntas e cauda estanque. Levanta e abaixa o jornal e ele ali.
Ela adora os gatos que faz em tecido, obra de seu artesanato delicado. Adora a plasticidade felina, suas curvas, sua sutileza, mas do bicho propriamente dito não pode dizer o mesmo. Há algo de inquietante e desconfiável nos gatos. Abaixou o jornal novamente. Não conseguia se concentrar, pois sabia que os olhos a perscrutavam. E ali estavam eles, implacáveis e constrangedores. Por que motivo ele se fixava nela daquela maneira? Olhou em volta. Teria se apropriado do espaço do gatinho?Afinal ela era a estranha no pedaço.
Voltou a pousar os olhos nas manchetes, mas ainda sentia-se invadida, desnudada. O incômodo a asfixiava como se alguém tivesse descoberto um segredo recôndito. Resolveu levantar-se e sair de fininho sem chamar a atenção de ninguém, nem mesmo do gato. Virou-lhe as costas, supondo que o bichano se instalaria no calor da poltrona. Seguiu com passos leves para a cozinha. Um copo de água. Um copo de água talvez trouxesse alívio para esses minutos desconfortáveis.
Que estaria pensando esse pequeno ser?O que ele sabia sobre ela?Por que ele a incomodava tanto?Fechou os olhos em intranqüilos segundos, enquanto caminhava e quase suspirou, então notou que o bichano seguia seus passos. O coração afligiu-se e fez força para não demonstrar o incompreensível drama que vivia ali.
Tomou a água e voltou para a poltrona com uma agitação barulhenta que ecoava nos labirintos de seus pensamentos. Por fora, a televisão, cadeiras, samambaias e almofadas pareciam rir daquela ridícula situação somente as pessoas continuavam alheias.
Foi então que no limite e desejando preservar o que julgava ser sua única propriedade legitimamente privada que apelou:
-Vamos fazer o seguinte?Eu fico aqui, lendo meu jornal e você procura um outro lugar para ficar.Eu não incomodo você e você não me incomoda.Pode ser?
O gatinho já adivinhara esse desejo, mas agora que ouvia em alto e bom português, dobrou-se sobre seu dorso, lambeu umas três vezes a cauda, deu meia volta e concordou. Sem olhar para trás entrou pelo corredor carregando os segredos dela.

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