(Impressões sobre o livro)
Eloah
Margoni
Esse romance de Daniel Defoe, escrito no
século XVII, foi-me recomendado por um amigo historiador quando queria eu saber
algo sobre os trajes ingleses da época, para o livro Zion. Ter-me-ia sido bem útil
pois a personagem principal, Moll, fala de rendas e de panos, de adornos; a
certa altura da vida diz que gostaria de se casar com um “cavalheiro”, com
alguém que não tivesse a marca do chapéu sobre a peruca. Isso mostra que homens
ricos e nobres ou não usavam chapéus, ou esses objetos eram muito bem cuidados
tais como as perucas, e não teriam marcas. Contudo só consegui o livro mais
tarde, um exemplar de edição fina com bonita capa vermelha, pela bagatela de
cinco reais.
O
livro é um prazer. Muito interessante a história dessa mulher que, nascida em
berço pobre e praticamente órfã na infância, conseguiu por sorte ter uma
educação esmerada tal como as moças elegantes da época. Estava, acima de tudo, decidida
a não ser uma criada; queria autonomia e pode-se imaginar que as perspectivas
das mulheres daquele século eram bem escassas. Para não se tornar uma simples
serva, Moll fez de tudo, desde trabalhar duro ainda em criança até se casar quando
possível e conveniente (casou-se cinco vezes, sendo uma delas com um irmão,
conquanto não soubesse disso), e tornar-se uma ladra profissional,
eventualmente prostituta quando as circunstâncias a obrigaram. Poderia ela ser
vista como uma feminista do sec. XV e até tem traços disso. Contudo não gosto da
personagem e mais adiante direi os motivos, embora não possa deixar de
admirá-la.
O autor, Defoe, dá tom de veracidade à
história, como se o narrador divulgasse manuscrito da própria personagem, que
lhe caíra em mãos. Mas sendo isso verdade ou não, conta ele algo que poderia
ter acontecido em seu tempo e Moll seria talvez mistura de mulheres, ou uma das
que conheceu ao longo da vida. Aliás, a personagem salienta que seu nome
verdadeiro não é Moll Flandres, sendo esse um dos nomes que adotou entre vários
e pelo qual se tornou conhecida.
Fora ela uma moça muito bela, ingênua e
pura em certa fase, alvo de assédios e de conquistadores. Numa das passagens da
obra diz algo parecido com o que segue, embora de forma bem mais literária: que
não é favorável nem útil a uma jovem ser precocemente elogiada por sua
formosura, que a façam acreditar ser linda. Porque a moça, ao se convencer
disso, passa a crer que será natural e inevitavelmente amada, que despertará
amor nos homens e, assim, torna-se presa fácil de manipuladores, os quais
somente a desejam, seduzindo-a com promessas falsas. Isso lhe aconteceu ainda
bem jovem, quando se apaixona por um homem de posição social muito superior à
sua o qual, embora lhe prometa casamento, jamais pretendeu unir-se a ela.
Houve também períodos muito amenos e
prosaicos na vida da personagem que, estando casada posteriormente, tornou-se a
mais discreta e fiel das esposas, fazendo e criando filhos, administrando a
própria casa. Porém, de modo geral, a expectativa de vida não era longa para os
homens ou maridos... E nada disso, nenhum dos azares impediu que, quando
necessitada e para sobreviver, se tornasse uma ladra refinada e fria, o que era
ao mesmo tempo um risco enorme e uma arte necessária, uma vez que os ladrões
eram presos na tenebrosa Newgate, ou deportados para os Estados Unidos em
viagem atroz e, se reincidentes na Inglaterra, sumariamente enforcados.
Mas por que não simpatizo com Moll,
nem gosto da personagem, conquanto sua história seja fascinante? Por sua falta
de sensibilidade. Não mostra nenhum amor por animais, por paisagens ou por
plantas, nem fala disso. Não se interessa por artes, por filosofia ou pela
beleza de algum modo. Livra-se de todos os vários filhos de forma conveniente,
conquanto não cruel, e não dedica qualquer pensamento a eles ao longo dos anos.
É verdade, porém, que a reprodução acabava sendo compulsória para mulher fértil
com vida sexual ativa, mesmo a contragosto, pois nada sabiam sobre sua
fisiologia reprodutiva; mas mesmo assim... Tampouco se interessa por questões
sociais e não se comove com a exploração das pessoas nem com a crueldade da
justiça daquele século. Moll era, enfim, uma rematada sobrevivente. Calculista
e inteligente, embora não fosse pessoa má faz coisas também más, e tinha
ousadias masculinas. Também não era desprovida dos laivos religiosos do
momento, que muitas vezes se manifestavam em muitas lágrimas, súplicas e
arrependimentos, especialmente quando temia acabar pendurada na forca.
Moll vive muito, até a idade avançada, o que
já é um enorme feito no século XV. Pode-se nem gostar muito dela, mas
impossível desgostar do livro, tão bem escrito que é; pura literatura. Também
necessário reconhecer que a vida de Moll foi bem mais interessante, movimentada
e repleta do que as vidas de grande parte das pessoas no mundo contemporâneo,
até daquelas que possuem televisões, telefones celulares, banheiros com água
encanada, mas assim mesmo vivem vidas banais, sem grande sentido e, do fundo da
alma invejariam Moll Flandres se lhe conhecessem a impressionante história, as
aventuras, seus desejos, amores e crimes.
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