Christina Ap.
Negro Silva
Abriu
uma porta. Nada. Outra e mais uma. Nada. Ouvira
aquele barulho novamente e vinha do andar de cima. Parecia o ronco de um
despertador do celular – há dias o escutava e não conseguia identificar sua
localização. O que seria aquilo? Não se lembrava de ter deixado nenhum aparelho ligado nos cômodos da casa.
Era sim uma casa grande e velha, já estava mobiliada quando se mudara ali há
tantos janeiros, que nem mais se lembrava com exatidão do ano. Àquela época,
tinha verificado em todas as gavetas, portas de armários e não se lembrava de
ter visto nada além do mofo nas paredes. Estava só, completamente só. Este
incidente, porém, até trouxera-lhe algum alento – tinha algo para ocupar –se :
descobrir o causador do barulho.
O
que parecia uma brincadeira, com o passar dos dias, tornou-se uma obsessão –
era preciso encontrar a COISA SONORA a qualquer custo. Planejou com cuidado de
detalhes sua inspeção pela casa – ou melhor, pelo andar de cima, pois tinha
certeza de que o som vinha dali.
Primeiro
o banheiro, palmo a palmo vasculhado – dentro do armarinho, encontrou apenas a
pasta e escova de dentes e um velho aparelho de barbear – Será que funciona ? pensou,
enquanto o colocava na tomada ... rooommm
– gemeu o dito sob suas mãos . Como o jovem imberbe que anseia por fazer
sua primeira barba, levou-o com cuidado à face enrugada. Sensação boa, lembranças
de um tempo engravatado, trabalho de abotoaduras, vida apressada em pasta de
couro. Desligou-o e voltou à sua obstinada tarefa. No banheiro não estava.
O
quarto da filha, sua próxima parada. Entrou devagar, talvez com receio de
acordar as recordações que ali jaziam. A filha tinha casado há dois anos, mas
seu perfume ainda rescendia nas paredes. Parou um instante para observar ao redor
– teto claro, chão limpo e encerado, cama arrumada, escrivaninha organizada,
penteadeira vazia. Onde havia guardado a imagem da filha na moldura do espelho
que lhe sorria? Agora, parecia que a via ali, presa em um tempo-espaço de sempre
– atenciosa para com ele quando a
procurava para uma conversa, uma dúvida, um carinho em palavras. O silêncio,
porém, reinava implacável. Vasculhou tudo, nada encontrou. Receoso, foi andando
de fasto, pés para trás, para não se despertar
daquela memória: a filha sorrindo, penteando seus cabelos, passando o batom, o
som cálido de sua voz de menina-moça. Chacoalhou a cabeça, ele tinha um
propósito, não devia dar-se ao desfrute de sentir essas sensações todas, não
depois de tudo o que lhe havia ocorrido.
O
quarto do casal – nunca mais tivera coragem de penetrar seu corpo naquele
recinto, sua alma o visitava com frequência, isso sim, mas a carne, o sangue,
todo seu ser, arrepiava-se ao tocar na maçaneta da porta. Mas agora, não tinha
jeito, ele precisava encontrar a COISA SONORA. Fechou os olhos por um instante
e tocou a porta, empurrando-a com força. Talvez quisera espantar a imagem que
tinha diante dos olhos da sua recordação – a mulher sem vida jazia naquela
imensa cama, seus brancos cabelos emolduravam seu rosto pálido e sereno. De um
salto, pulou sobre a cama vazia, chorando como uma criança que tem seu
brinquedo arrancado à força. Que saudades ! Quanta falta sentia dela. Quantos
beijos secos, abraços estragados, palavras ocas , o tempo – este inexorável senhor – levou embora
? ! A solidão era sua melhor companhia, se não fosse aquele terrível barulho a
tirar-lhe da zona de conforto que sua nova amante lhe propiciava, ele jamais
teria entrado no quarto do casal.
Tramm- trammm- ouviu o som tão
perto. Ah, então era ali que ele brincava de pique esconde ? Foi aproximando-se
mais e mais do criado mudo. O diário da esposa cuidadosamente deixado sobre o
tampo, seus óculos de leitura ao lado, a gaveta entreaberta e ... ali estava o
que tanto procurava ! Um pequeno porta-joias de madrepérola – trammm- trammmm - tremeu o maldito. Até que enfim, a
busca estava terminada. Mas o mistério persistia. Depois de tantos anos , como
a corda ainda funcionava ? ou melhor, emperrara , provocando o barulho do
desassossego ? Pegou o objeto nas mãos e deu-lhe cordas – uma melodia, uma
valsa vienense ou algo parecido, encheu o quarto. Ele deixou-se bailar nos
pensamentos. Viu-se jovem, elegantemente trajado, tirando a menina de cabelos encaracolados para
dançar. Valsou pelo salão, sussurrou-lhe palavras de amor...Valsou pela cidade,
viu-se bem sucedido em seu negócio. Valsou pela vida – viu-se novamente só, sem
a mulher amada, sem qualquer humana companhia, tocou o diário e ato contínuo,
viu-se abrindo o caderno e lendo o último registro feito – Querido, sei que um dia você acabará por encontrar-me (...) aqui , você
estará com meu amor em palavras escritas. Eu sabia que partiria antes de você, (...)
não fique triste, vivemos felizes e isso é tudo o que importa. Por favor, nunca
se esqueça de mim, de nós, do que fomos (...) Com carinho, tua Adelle.
Meu
Deus ! Ela já sabia que estava morrendo. Ele fizera segredos, proibira as
visitas dos parentes, ela fora tão forte. Chorou, soluçou, chamou-a pelo quarto
vazio, passou não se sabe quantos minutos naquele estado de descoberta e
saudade. Por fim, carregando o diário e o
porta joias, desceu para o primeiro pavimento. Agora teria sua Adelle a
fazer-lhe companhia. Uma vírgula, porém, interpunha-se nesta sua nova fase de
lobo solitário – como a corda do aparelho voltou a funcionar / emperrar depois
de tanto tempo ?
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