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segunda-feira, 27 de junho de 2011

Desejo de matar



Eloah Margoni

Já era idosa, com oitenta e dois anos. Lúcida, alta e forte porém, mas um pouco surda e os joelhos inchados de artrose reclamavam do corpo por demais robusto. Nordestina, fazia lindas rendas (de bilro creio), pelas quais ninguém se interessava muito ali no bairro, tanto mais que eram caras e até, no contexto, fora de moda... O marido, mais avançado em anos que ela, sofria de um câncer no aparelho respiratório; estava em fase terminal, com cuidados paliativos.
Ambos viviam em três cômodos pequenos, nos fundos da casa de um dos filhos. Tudo muito acanhado, mas plantavam verduras em pneus e latas e as colocavam em toda parte, até no telhado, o que amenizava bem o local. Além disso, havia uma pequena árvore no jardim...Deixavam, contudo, um pobre jabuti aprisionado e abandonado perto de águas sujas, embasados pela crença de que os quelônios melhoram males dos pulmões; porém isso em nada contribuiu para a melhoria do seu esposo, garanto. Ela cuidava constantemente dele naqueles cômodos malcheirosos e sem sol, onde também era nossa obrigação entrar, e o fazíamos com luvas máscaras.
O paciente acordava muito sufocado à noite, com secreções, que ela aspirava com a ajuda de um aparelho. A olhos vistos, aquela mulher idosa se desdobrava.
Esse quadro se arrastou por bom tempo, até que o doente faleceu. Continuei visitando-a no domicílio periodicamente; um dia ela me contou a seguinte história:
Ainda jovens viviam noutro Estado do país, na zona rural. Tudo era diferente na época. O marido tinha uma amante, segundo ela. Quando voltavam da missa ou vindos da casa de parentes, ele a mandava por um caminho e seguia por outro, para encontrar a amante, no seu entender. Sua mágoa ao me contar isso, parecia bem viva. Parece que o caso durou tempo. Ela teve e criou filhos, porém refere que amante também ficou grávida, e uma noite, quando essa criança teria nascido, ele não veio para casa. Dizia ela que conhecidos lhe traziam tais notícias; também contaram que o bebê nasceu morto. Confessou-me, com um sorriso estranho e malicioso, que gostaria de saber que a mulher, a ex, também já teria morrido! Isso me surpreendeu, pois ela mesma já era bem adentrada em anos, o marido falecido, tudo ia longe, e dava a impressão de que haveria mais com que se preocupar de qualquer forma... O ocorrido era por demais antigo. Mas quem pode dimensionar um coração feminino realmente ferido?
Sei que deveria indagar bem mais detalhes do caso, mas o pudor me impedia. Ou será que foi temor? Tive medo de perguntar-lhe se ela amava o marido e cuidara dele com afeto, ou se, no passado, presa a dificuldades e limitações sociais, emocionais e outras, nunca o pudera deixar nem demonstrar seu rancor. Vê-lo frágil no final, dependente dela, resolvera parte de seu malquerer? Seria isso? Agora, uma notícia da morte da ex- amante deste coroaria totalmente seu êxito!? Faltou-me coragem para destilar toda a situação, faltou-me.
-Muito Machado de Assis, dizia eu para mim mesma, pensativa. Muito Machado...

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