Richard Mathenhauer
Dirce Migliaccio morreu aos 75 anos, dia 22 de setembro. Início de Primavera, aqui no interior paulista, chuvoso, feio, frio, cinza demais. E esse tempo colaborou com minha volta ao passado, sem o pó mágico e as palavras mágicas do pirlimpimpim: vejo-me menino, sentado na poltrona de couro preto da sala menor da nossa casa, em frente à usina, numa tarde fria de um tempo já perdido.
Eu tinha medo da Cuca. O Saci só me punha um certo incômodo com sua risada, e era-me curioso que tivesse uma única perna (e muitas vezes brinquei pulando como ele). O medo da Cuca era estranho, porque, apesar de assustadora, a Cuca me causava um sentimento, talvez de pena. E entre medo e pena (não sei bem se seria pena...), Eu encolhia as pernas na poltrona e aguardava sempre o retorno de Cuca, na sua gruta, com seu caldeirão. Amava Dona Benta e tia Anastásia... não gostava que tomassem o gorro do Saci (apesar da sua risada...)... morria de vontade de comer o que Pedrinho e Narizinho comiam na mesa farta de sítio, e intrigava-me como Emília podia dormir numa caixa de costura... Mas de todos, o que mais me divertia, sem dúvidas, era Emília. Birrenta. A engenhosa e geniosa (e por vezes maldosa, como costumam ser maldosas certas crianças) boneca de pano!
Sem o pó do pirlimpimpim, volto a sentir o frio de algumas tardes, o cheiro típico da safra de cana-de-açúcar, ouço minha avó na cozinha, e no fundo de alguma parte em mim, a música de abertura que me deixava cheio de uma alegria inocente de quem aguarda algo. E Eu aguardava as aventuras, porque me via nelas, Eu era Pedrinho que podia conversar com o Visconde, com Rabicó, q3ue podia brincar com Emília e Narizinho, que podia sentir os braços de tia Anastásia e ouvir as histórias de Dona Benta. Sem fechar os olhos, viajava nas tardes daquele tempo que hoje ressurge como uma ilha rica com a baixa das águas do mar!
“O Sítio do Pica-pau Amarelo” não é uma doce lembrança apenas minha. Milhares de homens e mulheres de hoje, crianças e adolescentes daqueles tempos em que Migliaccio era a boneca geniosa do Sítio de Dona Benta, lembram-se das aventuras da turma do Sítio. Quando Dirce interpretou Emília, a primeira na TV Globo, em 1977, Eu tinha quatro anos; minhas lembranças mais fiéis são, portanto, do início da década de 80 e das reprises. (E quando Dirce saiu do papel, estranhei muito que Emília “não era a mesma”).
Com a morte da atriz Dirce Migliaccio, parece que se perde um pouco do encanto, pensando hoje, como adulto. Vieram outras Emílias, mas nenhuma foi como a primeira - para mim. Não me lembro de Lucia Lambertini que interpretou a primeira Emília na TV (TV Tupi, entre 1952 e 1963), nunca vi um vídeo daquela época, se é que existe. Mas não tenho receios em pecar dizendo que Migliaccio foi a Emília perfeita, aquela que Monteiro Lobato concebeu, assim como não houve um Visconde de Sabugosa como André Valli.
Emília do Sítio do Pica-pau Amarelo goza da imortalidade que os personagens da literatura têm. Nas minhas memórias (mortais) de menino, Dirce não será Dirce, será sempre Emília. Aquela Emília. E Emília continuará com a mesma cara-feia de quando era contrariada, o mesmo jeito de pular e comemorar quando conseguia algo. Será a verdadeira engenhosa e geniosa boneca de pano de Monteiro Lobato.
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