Ana Marly de Oliveira Jacobino
Dezenove! Dezenove horas! O andar, meio que pisando em ovos, é a mostra marcante da sua timidez. Entra meio titubeante ao lado do seu colega escritor. Os dois publicam pela mesma editora. Ele entra no palco, abraçado ao amigo Milton Hautoum. Aplausos! Frenesi! Todos os lugares ocupados! A praça foi pequena para conter tamanha multidão. Os ingressos nem chegam às mãos da grande maioria dos pobres mortais! Apenas alguns abonados, sortudos, conseguem se instalar nas poltronas macias da “Tenda dos Autores”, e uma grande multidão, assiste a entrevista na “Tenda do Telão” da Flip em Paraty.
Ele fica parado ao lado da poltrona em pé. Espera o mediador da mesa literária Samuel Titan Junior e o outro escritor da mesma mesa se sentar.
Samuel apresenta primeiro um breve currículo de Milton Hatoum, nascido em 1952, professor de literatura francesa da Universidade Federal da Amazônia e professor visitante de literatura brasileira na Universidade da Califórnia. Iniciou a carreira de escritor, em 1989, com “Relato de um certo Oriente” , livro vencedor de um dos mais importantes prêmios literários do Brasil, o “Jabuti”. O interlocutor se declara feliz com a sua desistência da profissão de arquiteto para se dedicar a letras.
Peço ao meu marido para ficar na fila dos autógrafos, com o “Leite Derramado” em suas mãos.
Bem! Dependurada como bandeira a meio pau na grade, em torno da “Tenda do Telão”, estou eu! Assisto a um dos compositores que embalam a minha vida. Aprendi a gostar das suas letras poéticas na infância, ao assistir o “Festival da Record” em que meu tio Marconi Campos da Silva, integrante do Trio Marayá, acompanha Jair Rodrigues na magistral interpretação de Disparada.
Final do festival da canção, a plateia se vê dividida em seus aplausos entre “Disparada”, composta por Geraldo Vandré e Theo de Barros “”, e “A Banda” de Chico Buarque de Holanda “”. O juri vota pelo empate e, dessa maneira, as duas músicas se sagram vencedoras.
Cantei com força naquele dia histórico e hoje me assombro com a beleza da letra, em especial um fragmento da magistral “Disparada”, o qual enfatizo; precisamos entender, em definitivo, o que diz “mas com gente é diferente”:
“Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo
E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando
As visões se clareando, até que um dia acordei
Então não pude seguir valente em lugar tenente
E dono de gado e gente, porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente
Se você não concordar não posso me desculpar
Não canto pra enganar, vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar”
Aplaudi, cantei e gritei, agitando o cartaz por “Disparada”, mas, dividida, também cantei “A Banda”, com Nara Leão.
Vejo, nitidamente, o Chico em um smoking preto, em pé, duro como um pedaço de pau segurando o violão ao lado de Nara, enquanto, Jair Rodrigues, o Trio Marayá e o Trio Novo interpretam “Disparada” .
Recordo me do sorriso largo na sua boca, enquanto Jair Rodrigues, ao seu lado, bate palmas, e o público o acompanha:”Pra ver a banda passar cantando coisas de amor...”
Meu marido chega e fala:
– O Dawkin vem da Inglaterra até aqui, e dá autógrafos, e o babaca do Chico não vai dar?
Pedi para ele, assim mesmo, voltar para a fila.
Aplausos!
– Ele me copiou e foi mais rápido. Publicou antes de mim, mas eu sou inocente! – disse Chico.
Chico e Milton Hatoum comentam, sorrindo, a similaridade entre as obras, que acabaram de escrever.
Chico Buarque fala que passou um ano e meio pesquisando e lembrando histórias contadas pelo pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, e confessa que nunca foi um bom leitor de história. Como Hatoum, buscou a concisão no relato. Explica o “Leite Derramado” como um livro inspirado na canção “O Velho Francisco”, de 1987, em que dizia: “O meu pai era paulista/ Meu avô, pernambucano/ O meu bisavô, mineiro/ Meu tataravô, baiano/ Meu maestro soberano/ Foi Antonio Brasileiro.”
Chico narra com prosa elegante, fluente e divertida a história decadente da família de Eulálio Montenegro d’Assumpção, um velho enfermo que foi abandonado, pela mulher, em um hospital no Rio. O enredo tem início na corte portuguesa, percorre períodos do Império e da República Velha até chegar aos dias atuais, utilizando figuras e cenários que habitam a memória de Chico.
Na velhice, como diz o velho narrador de Chico, “a gente dá para repetir casos antigos”, mas o autor precisou de 150 páginas, para contar como mudou a história do Brasil neste último século para que tudo permanecesse exatamente igual, do preconceito racial à corrupção.
Chico brinca com o amigo Hatoum, lembrando que esse narrador lhe azucrinou a vida durante um ano e meio, tirando seu sono e deixando ao escritor como herança uma perna quebrada. Assustado de como a ficção tomava conta da sua vida real, o cantor e compositor resolve encurtar a novela para se livrar do velho narrador azarento.
Logo à minha frente, um bêbado, já no interior da tenda, grita para o telão:
– Chico estou aqui. Fala comigo!
Os seguranças o agarram. E ele aos gritos continua a chamar a atenção de todos.
– Chico estou aqui. Fala comigo!
Na sua camiseta algumas palavras escritas com caneta hidrocor preta :
“Liberté, Egalité, Fraternité”.
Os dois autores continuam a conversa.
Chico Buarque apoia o protesto dos caiçaras da região ao ler:
– Eles evidentemente apoiam e aprovam o turismo cultural promovido pela Flip e por isso fizeram a passeata, para chamar a atenção; quanto ao perigo que correm com outro tipo de turismo, o predatório.
Enquanto isto, o bêbado do outro lado, no alto do poste da “Tenda do Telão”, grita para a imagem do Chico, erguendo os punhos para o alto:
– Chico estou aqui. Fala comigo! Liberté, Egalité, Fraternité.! Liberté, Egalité, Fraternité! Liberté, Egalité, Fraternité! (...)
Os seguranças cogitam subir para tirá-lo, mas ele grita mais forte:
– Liberté, Egalité, Fraternité!
A mesa dos autores termina e tento chegar à Tenda dos Autógrafos, arrodeando o outro lado da igreja. Fico parada perto da escada da tenda sem poder me movimentar. Depois de duas horas em pé as minhas pernas estão amortecidas. Os minutos passam e muitos repórteres me espremem e me jogam para o outro lado da calçada.
A sorte me sorri!Os fotógrafos e repórteres me ajudam! O Chico sorrindo rodeado de seguranças, espremido pelo batalhão de fotógrafos e repórteres, passa ao meu lado!
Não acredito! Espero a multidão dispersar. Meu marido agoniado no meio do povo me acena. Aos trancos e barrancos, consigo depois de muitos empurrões me aproximar dele. Claustrofóbico, ele me agita o “Leite Derramado” e a senha 52, e diz:
– O que a gente não faz por amor!
Declaração de amor a parte. Cutucada, empurrada, pisoteada..., chego nele.
Abro um sorriso de orelha a orelha e digo:
– Chico estive no festival da Record em que você ganhou com “A Banda”. O meu tio Marconi cantou com o Trio Marayá junto com Jair Rodrigues. Você se lembra do Trio?
– Trio Marayá, lógico que lembro. E o seu tio como está?
– Ah! Ele morreu em 2003.
Nisto ainda me olhando, sorrindo autografa o livro, enquanto, sou empurrada para longe dele.
A minha perna está trêmula pelo cansaço. Estou feliz!
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