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quinta-feira, 12 de novembro de 2009

TADEU - Ruth Assunção

TADEU
Ruth Carvalho Lima de Assunção

Aquele retrato, bem ali em frente da sala de estar, chamava a atenção de todos que chegavam. As perguntas eram inevitáveis. E a curiosidade crescia, principalmente das crianças. Que bonito, que grande, qual era seu nome?!!
Tia Concheta, com toda paciência, ia satisfazendo a todos.
Depois de ter acompanhado, por várias vezes, as narrativas de titia, comecei a duvidar de suas palavras. Seria, porque ela floreava demais, ou porque eu é que deveria estar confuso? Não, não poderia ser, eu me lembrava muito bem, estava sempre de corpo presente quando os fatos aconteceram. As imagens de minha infância ficaram, e penso que jamais, em tempo algum, serão deturpadas. Continuamente essas recordações se repetem trazendo-me as gratas satisfações dos tempos de meninice, os pés descalços, uma camisa rala sobre o corpo e, muitas vezes, quase desnudo, correndo ou dando cambalhotas na terra, na relva, dono do mundo.
Como se fosse hoje, ouço a voz rouca de Tio João, sempre aos domingos, nos chamando para o habitual passeio no seu sítio, à margem do Cuiabá.
Era aquela correria. Titia preparava os comes e bebes em sacolas, baldes e embrulhos. Os primos pegavam os calçados para usar no mato e agasalhos, pois à tarde sempre esfriava.
Tio João já acomodado ao volante de seu fordinho gritava:
-Vamos crianças, vamos embora, já é tarde!
A confusão estava armada, mas em poucos segundos, todos acomodados e espremidos, o fordinho arrancava, deixando a cidadezinha para trás. Ninguém ficava de boca fechada, os risos estouravam.
A alegria era contagiante. Todos falavam ao mesmo tempo e o poeirão ia entrando pela garganta, até que Tia Concheta punha ordem na criançada..
Apertando o pé no acelerador titio voava na estradinha estreita, tentando contar as suas piadas de almanaque. De repente o fordinho estava em frente à porteira. Titio buzinava, dando o sinal de nossa chegada. Não dava para esperar mais, saltávamos do carro numa correria, e eu sempre me incumbia de abrir a porteira para titio entrar.
Numa curva do pasto apareciam os cães correndo ao nosso encontro. Wader e Weller ouviam de longe o motor do carro e depois a buzina e vinham dar as boas vindas, pulando, latindo e nos beijando.
Titio esperava mais. O quadro estava incompleto, faltava o principal.
Então surgia o Tadeu, acompanhado pela Princesa e a Mocinha.
Forte, imponente, liderava o grupo. Desajeitado, nas suas toneladas, vinha balançando suas carnes pesadas, sacudindo o corpanzil para chegar depressa.
O carinho do touro e o carinho de titio se encontravam. Afagos, beijos, abraços, e não se largavam mais.
Nós, crianças, fugíamos para a beira do rio, escondidos de titio que no momento só queria a companhia do seu fiel amigo enamorado.
As brincadeiras na água eram muito gostosas, pulando, jogando água uns nos outros, e brincando de cabra-cega. Depois o pomar, subir nas árvores, apanhar as deliciosas mangas e se encher de frutas, dispensando o lanche de titia.
Na beira da cerca avistei titio conversando com seu vizinho, o Sr.Antonio, que gesticulando, apontava para o touro.
Percebi o interesse, o homem queria o Tadeu. Achei que nunca esse animal tão estimado poderia passar para as mãos do outro. Tio sempre dizia que só o venderia para reprodutor. Não queria vê-lo no açougue.
Mas Tadeu foi vendido, naquele dia mesmo passou para as pastagens vizinhas.
Não entendi como titio teve a coragem, como acreditou nas promessas, como continuaria a visitar o sítio sem o seu fiel amigo de todas as horas.
Deixamos de ir ao sítio por duas semanas. Titio, cabisbaixo, pensativo, quase não falava. Desde aquele dia era um homem triste, sem coragem para nada, seu entusiasmo havia perdido o calor.
À noitinha as músicas invadiram a nossa casa. Rojões pipocavam na fazenda ao lado, fagulhas iluminando a noite quente, o cheiro de carne assada castigando nosso olfato e gargalhadas, gritos e danças quebrando a monotonia campestre.
A mandioca cozida, a cerveja, a pinga com limão e os canibais rasgando as carnes servidas, as carnes do meigo e doce Tadeu, o fiel amigo de Tio João.
Tia Concheta falava do retrato na parede, inventando coisas. A minha história é outra. A de titio também, acrescida de juros e correção monetária.

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