(pintura de D.Zolan)
Deslumbramento
Lino Vitti
Batizaram-no de Manuel. Ficou para a vida, depois, o simpático apelido de Manequi. Interessante como se penduricam apelidos nas pessoas. E como todos: pais, familiares, mestres, amigos e outros se unem em torno da alcunha, a repetem, a conservam, a eternizam. Assim, era Manequi daqui, Manequi dali, Manequi de cá, Manequi de acolá. E o Manequi sorria, um sorriso gostoso de quem aprova o nome que de batismo não é. Talvez porque, o Manuel, trazia aquele diabo de hiato de mau gosto “ue” tornando-o de certo modo antipático ao uso e meio mole de se pronunciar.
O menino, entretanto, cresceu como todos os meninos da roça, pois na roça havia nascido. Quem baixa a este mundo, em noite escura, arrancado das entranhas maternas por mãos de parteira amadora, já chega berrando, colocando em polvorosa a casa e as vizinhanças, com a força de seu choro valente e promissor. Manuel assim prometia, e mantinha, ao caminhar da vida roceira, a valentia necessária para uma existência difícil, sempre a exigir algo, como eram e são ainda as vidas que brotam, florescem e frutificam na liberdade do campo.
Não quero me deter, por exigências aprisionadoras dos espaços muito preciosos dos jornais de todo o mundo, em desfiar em detalhes os dias de infância do Manequi, em muito semelhante a de todos os meninos roceiros, não poderia deixar de dizer entretanto que o nosso herói nascera com um espírito de observação incomum, porquanto se os demais de sua idade e de origens assemelhadas não davam trela observativa aos fenômenos da natureza campesina, a alma de Manequi como que se deixava imantar pelas maravilhas de um amanhecer ou de um entardecer, de um dia de sol, de uma árvore frondosa, de um lavrador lutando de enxada à mão ou arando, de um temporal a toldar os horizontes natais, de uma floresta cheia de todos os arcanos vegetais e animais, de um plenilúnio seresteiro, de um regato a conversar com as ervas e as flores da mata espessa, enfim, de tudo quanto constitui as belezas, os encantos, o amor e o sonho de uma vida campestre.
E sonhava também. Sonhava com um mundo imenso, generoso, rico, feliz e fantástico que deveria existir e brilhar além dos limites de sua roça, como lhe faziam chegar aos ouvidos e ao seu mundo de fantasia, as conversas das visitas forasteiras, as aulas das professoras escolares, o noticiário radiofônico, e especialmente os livros sobre os quais muitas vezes e feito um poço de curiosidade se debruçava o garoto, sedento de conhecer e desejar um dia, quiçá (?), ver de perto, tocar com as mãos gulosas de esperanças e novidades.
Manequi sonhava muito, aliás. Além das fronteiras domésticas que se estendiam até onde os olhos curiosos podiam deduzir, era possível existirem grandes cidades, fabulosas cidades, novas terras, novos horizontes, novas gentes, novos e muitos lares, novos e muitos amigos ! E como os desejava ! Muitas vezes, na luminosidade do dia, tocando as nuvens alvas e movediças, roncando como estranho animal voador, Manequi contemplava o vôo metálico de um avião e vibrava com a idéia de que lá, nas alturas infinitas , dentro daquele pássaro de ferro, havia pessoas, pessoas que buscavam outras terras, outras gentes, outros horizontes. E invejava, e desejava, e batia palmas ao espetáculo, ansioso de um dia também voar aprisionado no seio da ave de aço que comia as distâncias espaciais como se nada fossem.
* * *
O meio-dia sufocava. A roça diluia –se sob a glória do sol. E o calor, e a hora, e o silêncio e tudo convidava para a sesta. Pássaros e bichos silvestres ou domésticos calaram seu canto e seu mugido, buscando a sombra e a tranqüilidade. E o ronco do avião destoava como um absurdo, na imensidade azul do dia.
Ao longe, de súbito, o horizonte se abriu e se distendeu fantasticamente. E na fímbria do infinito foram se delineando, como um milagre, inúmeros arranha-céus. Subiam, subiam, quase arranhavam verdadeiramente o céu. Encostavam nas nuvens. E a festa das vidraças faiscava, tremeluzia, caleidoscopicamente, fantasticamente. E ele via. Manequi via. E a curiosidade do menino escorria por aquelas paredes intermináveis, rumo ao chão. E aqui fervilhavam veículos e mais veículos, de todas as cores, de todos os tipos, num festival fremente de vida e progresso. E homens, mulheres, crianças, velhos, jovens, brancos, negros, orientais, europeus, americanos, fervilhavam num caminhar apressado, como quem vai em busca de uma existência feliz, trabalhosa e sonhada. Regurgitavam lojas, casas comerciais, casas de espetáculos, livrarias, estúdios de rádio e televisão, redações de jornais e revistas, escolas, estádios esportivos, trepidavam passos rumo às fábricas, aos supermercados, às praias, aos hotéis e motéis, às repartições públicas, estaduais, municipais, federais... E se fez noite. E a escuridão da noite se iluminou, como se o sol continuasse a sua missão diurna de brilhar. E os entes humanos prosseguiam em sua faina de trabalho, de atividades, de lutas e labutas, sem interrupção entre o dia e a noite. A vida, o caminhar, o trabalhar, o agredir as dificuldades e o viver sonhando com riquezas e belezas, era uma constante, empurrava as multidões apocalípticas para diante , para um porvir fabuloso, na conquista do amor, da esperança, da expectativa, da felicidade enfim.
E Manequi via. Via e se sentia envolto naquela trepidação de vida extraordinária. Via que além de sua vidinha de roça, havia uma enormidade de existência, que ele ignorava, mas que agora contemplava, pressentia, desfrutava. Como era imenso o mundo ! E quantos mundos o mundo abarcava !
O pintassilgo da gaiola abriu o biquinho. E cantou. E acordou Manequi de seu sonho, nada mais do que uma realidade que está presente na glória de São Paulo. O menino sonhara? Talvez, não. A televisão mostrava a ciclópica capital paulista, com todo o seu fausto, com todos os seus problemas, com todas as suas conquistas, com todas as suas vitórias e derrotas, em fantástica reportagem, enquanto Manequi, entre a penumbra do sono e da vigília, se deixara envolver pelo deslumbramento da quase ou maior cidade do mundo.
Sonhara de olhos abertos pois a visão que vislumbrara era sim a fabulosa São Paulo, festiva e sensacional comemorando seus 450 aniversários de fundação.
Lino Vitti
Batizaram-no de Manuel. Ficou para a vida, depois, o simpático apelido de Manequi. Interessante como se penduricam apelidos nas pessoas. E como todos: pais, familiares, mestres, amigos e outros se unem em torno da alcunha, a repetem, a conservam, a eternizam. Assim, era Manequi daqui, Manequi dali, Manequi de cá, Manequi de acolá. E o Manequi sorria, um sorriso gostoso de quem aprova o nome que de batismo não é. Talvez porque, o Manuel, trazia aquele diabo de hiato de mau gosto “ue” tornando-o de certo modo antipático ao uso e meio mole de se pronunciar.
O menino, entretanto, cresceu como todos os meninos da roça, pois na roça havia nascido. Quem baixa a este mundo, em noite escura, arrancado das entranhas maternas por mãos de parteira amadora, já chega berrando, colocando em polvorosa a casa e as vizinhanças, com a força de seu choro valente e promissor. Manuel assim prometia, e mantinha, ao caminhar da vida roceira, a valentia necessária para uma existência difícil, sempre a exigir algo, como eram e são ainda as vidas que brotam, florescem e frutificam na liberdade do campo.
Não quero me deter, por exigências aprisionadoras dos espaços muito preciosos dos jornais de todo o mundo, em desfiar em detalhes os dias de infância do Manequi, em muito semelhante a de todos os meninos roceiros, não poderia deixar de dizer entretanto que o nosso herói nascera com um espírito de observação incomum, porquanto se os demais de sua idade e de origens assemelhadas não davam trela observativa aos fenômenos da natureza campesina, a alma de Manequi como que se deixava imantar pelas maravilhas de um amanhecer ou de um entardecer, de um dia de sol, de uma árvore frondosa, de um lavrador lutando de enxada à mão ou arando, de um temporal a toldar os horizontes natais, de uma floresta cheia de todos os arcanos vegetais e animais, de um plenilúnio seresteiro, de um regato a conversar com as ervas e as flores da mata espessa, enfim, de tudo quanto constitui as belezas, os encantos, o amor e o sonho de uma vida campestre.
E sonhava também. Sonhava com um mundo imenso, generoso, rico, feliz e fantástico que deveria existir e brilhar além dos limites de sua roça, como lhe faziam chegar aos ouvidos e ao seu mundo de fantasia, as conversas das visitas forasteiras, as aulas das professoras escolares, o noticiário radiofônico, e especialmente os livros sobre os quais muitas vezes e feito um poço de curiosidade se debruçava o garoto, sedento de conhecer e desejar um dia, quiçá (?), ver de perto, tocar com as mãos gulosas de esperanças e novidades.
Manequi sonhava muito, aliás. Além das fronteiras domésticas que se estendiam até onde os olhos curiosos podiam deduzir, era possível existirem grandes cidades, fabulosas cidades, novas terras, novos horizontes, novas gentes, novos e muitos lares, novos e muitos amigos ! E como os desejava ! Muitas vezes, na luminosidade do dia, tocando as nuvens alvas e movediças, roncando como estranho animal voador, Manequi contemplava o vôo metálico de um avião e vibrava com a idéia de que lá, nas alturas infinitas , dentro daquele pássaro de ferro, havia pessoas, pessoas que buscavam outras terras, outras gentes, outros horizontes. E invejava, e desejava, e batia palmas ao espetáculo, ansioso de um dia também voar aprisionado no seio da ave de aço que comia as distâncias espaciais como se nada fossem.
* * *
O meio-dia sufocava. A roça diluia –se sob a glória do sol. E o calor, e a hora, e o silêncio e tudo convidava para a sesta. Pássaros e bichos silvestres ou domésticos calaram seu canto e seu mugido, buscando a sombra e a tranqüilidade. E o ronco do avião destoava como um absurdo, na imensidade azul do dia.
Ao longe, de súbito, o horizonte se abriu e se distendeu fantasticamente. E na fímbria do infinito foram se delineando, como um milagre, inúmeros arranha-céus. Subiam, subiam, quase arranhavam verdadeiramente o céu. Encostavam nas nuvens. E a festa das vidraças faiscava, tremeluzia, caleidoscopicamente, fantasticamente. E ele via. Manequi via. E a curiosidade do menino escorria por aquelas paredes intermináveis, rumo ao chão. E aqui fervilhavam veículos e mais veículos, de todas as cores, de todos os tipos, num festival fremente de vida e progresso. E homens, mulheres, crianças, velhos, jovens, brancos, negros, orientais, europeus, americanos, fervilhavam num caminhar apressado, como quem vai em busca de uma existência feliz, trabalhosa e sonhada. Regurgitavam lojas, casas comerciais, casas de espetáculos, livrarias, estúdios de rádio e televisão, redações de jornais e revistas, escolas, estádios esportivos, trepidavam passos rumo às fábricas, aos supermercados, às praias, aos hotéis e motéis, às repartições públicas, estaduais, municipais, federais... E se fez noite. E a escuridão da noite se iluminou, como se o sol continuasse a sua missão diurna de brilhar. E os entes humanos prosseguiam em sua faina de trabalho, de atividades, de lutas e labutas, sem interrupção entre o dia e a noite. A vida, o caminhar, o trabalhar, o agredir as dificuldades e o viver sonhando com riquezas e belezas, era uma constante, empurrava as multidões apocalípticas para diante , para um porvir fabuloso, na conquista do amor, da esperança, da expectativa, da felicidade enfim.
E Manequi via. Via e se sentia envolto naquela trepidação de vida extraordinária. Via que além de sua vidinha de roça, havia uma enormidade de existência, que ele ignorava, mas que agora contemplava, pressentia, desfrutava. Como era imenso o mundo ! E quantos mundos o mundo abarcava !
O pintassilgo da gaiola abriu o biquinho. E cantou. E acordou Manequi de seu sonho, nada mais do que uma realidade que está presente na glória de São Paulo. O menino sonhara? Talvez, não. A televisão mostrava a ciclópica capital paulista, com todo o seu fausto, com todos os seus problemas, com todas as suas conquistas, com todas as suas vitórias e derrotas, em fantástica reportagem, enquanto Manequi, entre a penumbra do sono e da vigília, se deixara envolver pelo deslumbramento da quase ou maior cidade do mundo.
Sonhara de olhos abertos pois a visão que vislumbrara era sim a fabulosa São Paulo, festiva e sensacional comemorando seus 450 aniversários de fundação.
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