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sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A senhora das chuvas
Ivana Maria França de Negri

A chuva sempre estivera presente em sua vida. Nos momentos mais marcantes, lá estava ela, fina garoa ou a desabar torrencial. Sua mãe sempre contava que no dia do seu nascimento, chovia tanto, que a parteira não conseguiu chegar a tempo e, quando finalmente o fez, o bebê já havia nascido. A chuva era uma constante em seus momentos mais relevantes.
Quando menina, deveria ter uns oito anos, no dia em que sua gatinha de estimação morreu, chovia tanto na hora de enterrar o corpinho, que se formou uma poça de água na cova. Aquilo marcou muito a sua infância, pois sempre que chovia, ficava nostálgica e uma tristeza mórbida a invadia.
No dia marcado para o seu casamento, chovia a cântaros. Diziam as tias que era bom sinal, que dava sorte e significava fartura, daí, se animava um pouco; e assim, sua vida foi passando entre temporais e garoas. Choveu no nascimento dos quatro filhos, nos seus batizados, aniversários, no dia da morte de sua mãe e no funeral do marido que morreu de acidente num dia de tempestade.
Começou a se acostumar com isso e achar que, de certa maneira, a chuva fazia parte de sua vida. Sentia o cheiro dela bem antes das nuvens se formarem e o temporal desabar.
Muitos anos haviam se passado e sabia que estava velha demais. Seus olhos opacos, não viam com acuidade e seus ouvidos já não ouviam o som familiar do vento a anunciar os temporais, mas os pressentia, sempre sabia quando se aproximavam. Estava cansada, muito cansada. Vivia enfurnada no tédio, pois por mais que vivesse num santuário de livros, não podia mais lê-los e a TV não a atraía mais pelo mesmo motivo: já não enxergava e nem ouvia como antes. Achava até que Deus havia se esquecido dela, pois tinha certeza que há muito já havia completado um centenário. Vivia num mundo próprio, só dela, dormia muito, a maior parte do tempo e misturava sonho com realidade. Nem distinguia quem estava vivo de quem já morreu, todos se misturavam em suas idéias confusas.
Com movimentos lentos e limitados, caminhava para sua poltrona favorita, em frente à lareira, e ficava a devanear. O único que a entendia era o velho gato, Antônio, que vinha ronronar em seu colo, aconchegando-se à ela e fazendo-lhe carinho. Sim, ele era o único a lhe dar atenção. Os bisnetos quase nunca vinham visitá-la, não tinham tempo. Perdoava-os, pois o mundo mudara muito e os tempos eram agitados demais para que alguém se preocupasse com uma velha. Ela sim, tinha todo o tempo do mundo para pensar na vida, devanear, recordar, sonhar, compor poemas só para si, cantarolar as músicas que mais gostava e dormir, dormir e dormir.
Às vezes perdia a noção do tempo. Viver demais era cansativo e angustiante também, todos os amigos já haviam falecido e assistir a morte dos próprios filhos, de velhice, em dias de muita chuva, foi-lhe muito doloroso.
Uma arrumadeira contratada pela neta caçula vinha todos os dias, deixava tudo em ordem e preparava uma sopinha, sempre a mesma sopa. Não se queixava. Quando a moça ia embora e perguntava se ela desejava alguma coisa, respondia que não, não precisava de nada. Gostava de sua solidão, já tinha a companhia confortante de Antônio.
Naquela noite, outra entre tantas, todas iguais, ela sentiu aquele cheiro inconfundível, quase agradável de chuva. Estava formando-se um temporal e pressentia que algo ia acontecer. Sentia-se leve, serena e começou a vislumbrar os vultos dos amigos, dos filhos, dos pais e do amado esposo que vinham alegres se reencontrar com ela. Sentiu-se jovem de novo, a mente clareou, os ouvidos, agora aguçados, ouviam sons celestiais, e seus olhos não possuíam mais aquela névoa constante que a impedia de enxergar.
Como essa hora demorou a chegar! Finalmente Deus se lembrara dela. Sentiu que seu espírito abandonava aquele corpo frágil e cansado, e estava radiante. Mergulhou na luminosidade que a aguardava e conheceu uma felicidade indescritível.
Uma chuva impetuosa precipitou-se sobre a cidade inundando tudo, lavando as calçadas, vidraças, parapeitos, catedrais e a alma das pessoas daquele lugar...

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