Êxodos
Richard Mathenhauer
Quando adolescente, ouvi que para nascermos neste mundo, nalgum outro tivemos de morrer. Imaginei, com a dramaticidade da idade, um despedir-se, um velório, um chorar de tristeza, e tão logo, um alívio, uma felicidade por um novo ser que chegava. Conclui, assim, ainda que desajeitadamente, que o nascer implica morrer e que morrer, nascer. Que isso não se limita na morte propriamente dita nem na vida, mesmo porque, o que está além disso que somos (num tempo e espaço específicos) recai no campo especulativo, dobra-se diante da fé que normalmente crê porque é absurdo, a mesma fé que não me ampara mais, porém, que não me tirou a beleza da idéia juvenil. Ainda gosto de pensar que já morri nalgum lugar, e que, portanto, a morte não me é desconhecida.
Nesta linha de pensamento (poético em ver o desenvolver da natureza no confirmar que tudo que teve princípio, terá fim), penso que os tantos nascimentos são como Êxodos; deixa-se uma terra para habitar outra. E o inverso, obviamente: os que morrem fazem o seu êxodo para uma terra desconhecida, “região misteriosa de onde nenhuma viajante jamais retornou”, conforme asseverou Hamlet.
À parte a fé que pode encontrar no nascimento e na morte desígnios divinos, penso que nascer e morrer são indiferentes à nossa vontade e à vontade de uma vontade superior. Mas esse Êxodo não é apenas o resultado de uma decisão alheia à nossa, de um livre arbítrio (tomo um termo teológico) por nascer e por morrer (quando não por suicídio). E como na circunstância do Êxodo do nascer e do morrer, há os Êxodos no próprio viver; na experiência íntima de cada um.
Uma vez egresso do ventre materno, temos experiências que só serão possíveis por meio do deslocamento, da saída voluntária ou imposta de uma situação a outra. Quando voluntária (resultado do reconhecimento de que é preciso fazer o caminho e que, como disse o poeta, o caminho só é feito ao andar), o Êxodo experienciado e vivido é a certeza de mudança. A garantia de que se vive e não apenas se passa pela vida, existindo - afinal, tantas coisas existem pura e simplesmente! Mudança de emprego, de cidade, de país, de amigos, de amores, perdas de dinheiro, ruínas, derrotas, divórcio... Tudo é uma metáfora de um Êxodo talvez menor, mas não desprovido de significado. É uma caminhada, ora longa, ora curta; é a provação do e no caminho; é o atravessar de um mar ou meramente de um lago ou de um rio. Mas é.
O mar abriu-se ao povo de Israel que acreditou que a escravidão podia ser vencida. É verdade que nem sempre o mar à nossa frente se abre. É verdade que acontece de o mar fechar-se quando estamos na travessia. Mas há também a possibilidade da travessia com êxito, apesar de toda a angústia que os Êxodos costumam trazer, porque mesmo numa mudança alimentada pela esperança do melhor, há de se abrir mão de algo que nos fará chorar ou hesitar (como devem ter hesitado alguns dos escravos hebreus em trocar a segurança do pouco pão pela promessa de liberdade).
Escrevo isso pensando em muitas coisas. Coisas pessoais, familiares, profissionais, coisa que me cercam e influenciam a vida em co-existência e co-dependência aos demais. Escrevo isso pensando que, embora reconheça que em vida há Êxodos inevitáveis se se quer mudanças, e por elas, novos horizontes, novas terras, novas esperanças, se em vida há Êxodos, deixei de colocar-me no caminho em não poucas ocasiões. Travei frente o mar e voltei para a escravidão (ou servidão) e para a segurança (enganosa) que ela oferecia. E como questionou La Boètie , “será isso viver feliz? Será isso vida? (...) Sujeitar o corpo, a liberdade, a alma?” – A uma amizade duvidosa, a um emprego em que explicitamente o esforço e dedicação não são peso para o reconhecimento; a um amor que sufoca e amputa-nos?
Um dia cruzarei o mar, querendo ou não. Feliz ou não, esperançoso ou não. Com ou sem Moisés, deixarei uma terra pela outra. Deixarei a casa, a família, os amigos, o amor, os projetos, os sonhos, “um livro aberto, talvez pela metade” (Quintana), e sem nada, irei. Se os espiritualistas estiverem certos, morro aqui e renasço noutro lugar. E então este Êxodo não será definitivo. Independente de ser mais um dos Êxodos (da carne e do espírito), bom será se na iminência da partida puder olhar para trás e dizer-me que valeu a pena – apesar das servidões impostas ou voluntárias; se um demônio, como diria Nietzsche, perguntando-me se gostaria de viver novamente, puder responder-lhe que sim, com tudo o que há de bom e mal implicado no viver. E atravessar, enfim, o grande mar, num novo (e não sei se definitivo) Êxodo.
Richard Mathenhauer
Quando adolescente, ouvi que para nascermos neste mundo, nalgum outro tivemos de morrer. Imaginei, com a dramaticidade da idade, um despedir-se, um velório, um chorar de tristeza, e tão logo, um alívio, uma felicidade por um novo ser que chegava. Conclui, assim, ainda que desajeitadamente, que o nascer implica morrer e que morrer, nascer. Que isso não se limita na morte propriamente dita nem na vida, mesmo porque, o que está além disso que somos (num tempo e espaço específicos) recai no campo especulativo, dobra-se diante da fé que normalmente crê porque é absurdo, a mesma fé que não me ampara mais, porém, que não me tirou a beleza da idéia juvenil. Ainda gosto de pensar que já morri nalgum lugar, e que, portanto, a morte não me é desconhecida.
Nesta linha de pensamento (poético em ver o desenvolver da natureza no confirmar que tudo que teve princípio, terá fim), penso que os tantos nascimentos são como Êxodos; deixa-se uma terra para habitar outra. E o inverso, obviamente: os que morrem fazem o seu êxodo para uma terra desconhecida, “região misteriosa de onde nenhuma viajante jamais retornou”, conforme asseverou Hamlet.
À parte a fé que pode encontrar no nascimento e na morte desígnios divinos, penso que nascer e morrer são indiferentes à nossa vontade e à vontade de uma vontade superior. Mas esse Êxodo não é apenas o resultado de uma decisão alheia à nossa, de um livre arbítrio (tomo um termo teológico) por nascer e por morrer (quando não por suicídio). E como na circunstância do Êxodo do nascer e do morrer, há os Êxodos no próprio viver; na experiência íntima de cada um.
Uma vez egresso do ventre materno, temos experiências que só serão possíveis por meio do deslocamento, da saída voluntária ou imposta de uma situação a outra. Quando voluntária (resultado do reconhecimento de que é preciso fazer o caminho e que, como disse o poeta, o caminho só é feito ao andar), o Êxodo experienciado e vivido é a certeza de mudança. A garantia de que se vive e não apenas se passa pela vida, existindo - afinal, tantas coisas existem pura e simplesmente! Mudança de emprego, de cidade, de país, de amigos, de amores, perdas de dinheiro, ruínas, derrotas, divórcio... Tudo é uma metáfora de um Êxodo talvez menor, mas não desprovido de significado. É uma caminhada, ora longa, ora curta; é a provação do e no caminho; é o atravessar de um mar ou meramente de um lago ou de um rio. Mas é.
O mar abriu-se ao povo de Israel que acreditou que a escravidão podia ser vencida. É verdade que nem sempre o mar à nossa frente se abre. É verdade que acontece de o mar fechar-se quando estamos na travessia. Mas há também a possibilidade da travessia com êxito, apesar de toda a angústia que os Êxodos costumam trazer, porque mesmo numa mudança alimentada pela esperança do melhor, há de se abrir mão de algo que nos fará chorar ou hesitar (como devem ter hesitado alguns dos escravos hebreus em trocar a segurança do pouco pão pela promessa de liberdade).
Escrevo isso pensando em muitas coisas. Coisas pessoais, familiares, profissionais, coisa que me cercam e influenciam a vida em co-existência e co-dependência aos demais. Escrevo isso pensando que, embora reconheça que em vida há Êxodos inevitáveis se se quer mudanças, e por elas, novos horizontes, novas terras, novas esperanças, se em vida há Êxodos, deixei de colocar-me no caminho em não poucas ocasiões. Travei frente o mar e voltei para a escravidão (ou servidão) e para a segurança (enganosa) que ela oferecia. E como questionou La Boètie , “será isso viver feliz? Será isso vida? (...) Sujeitar o corpo, a liberdade, a alma?” – A uma amizade duvidosa, a um emprego em que explicitamente o esforço e dedicação não são peso para o reconhecimento; a um amor que sufoca e amputa-nos?
Um dia cruzarei o mar, querendo ou não. Feliz ou não, esperançoso ou não. Com ou sem Moisés, deixarei uma terra pela outra. Deixarei a casa, a família, os amigos, o amor, os projetos, os sonhos, “um livro aberto, talvez pela metade” (Quintana), e sem nada, irei. Se os espiritualistas estiverem certos, morro aqui e renasço noutro lugar. E então este Êxodo não será definitivo. Independente de ser mais um dos Êxodos (da carne e do espírito), bom será se na iminência da partida puder olhar para trás e dizer-me que valeu a pena – apesar das servidões impostas ou voluntárias; se um demônio, como diria Nietzsche, perguntando-me se gostaria de viver novamente, puder responder-lhe que sim, com tudo o que há de bom e mal implicado no viver. E atravessar, enfim, o grande mar, num novo (e não sei se definitivo) Êxodo.
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