Criaturas
Eloah Margoni
Ontem, na hora do almoço, estava só no jardim de meu local de trabalho quando, de repente, vi sair das folhagens uma ratazana marrom de tamanho considerável, rabo um pouco roído, pelagem de cor uniforme e intensa mas não escura, porém sem brilho ou viço. Ela se assustou ao ver-me, com seus olhinhos espertos e também marrons, esses sim, vivos e viventes. Assustei-me, idem. Susto bilateral, sintonizado e recíproco. Enfim, sentimentos de alerta muito semelhantes. Mulher e ratazana irmanadas na surpresa do encontro breve e inesperado. Mutuamente e de forma imediata, fizemos um acordo tácito: nenhuma tinha nada a ver com a vida alheia... Pelo respeito mútuo decidimo-nos. A marrom percebeu meu pacifismo. Passou, nem devagar nem correndo, rumo à calçada e ao bueiro defronte. Foi-se, mas a impressão daqueles olhos pequenos e inteligentes, inquiridores, ficou-me.
Hoje de manhã foi uma rolinha na calçada de um terreno cheio de mato. Lá estava ela. Uma das asas meio capenga; mas ligeira, correu esconder-se em meio ao capim. Estaria ferida? Sobreviveria? Teria sede? Fiquei pensativa, mas tinha de atravessar a avenida, de trânsito até intenso; precisava chegar ao trabalho, ganhar meu dia. Seguir enfim. Em meio à nossa organização social que se sente tão superior eu vivo! Mas átomos de roedores e de bichos ainda mais estranhos gravitam-me pela alma. Não posso esquecer–me de alguns seres...
Fui assim pensando na vida das criaturas pequenas e na pequenez que também é nossa, embora não a reconheçamos. Indagava-me por que acreditamos que a formatação da nossa sociedade, de incoerente e tola complexidade, seja o máximo. Cheia de falências e atrocidades esta sociedade que inventamos! E o que seria de nós se, de repente, ficássemos sem energia elétrica para sempre? O que seria das cidades se os computadores pifassem? Semideuses em ruínas seriam revelados.
Porque, se somos tão magníficos, não vemos os spins dos elétrons, as cordas que vibram, as camadas que se desdobram, esticam-se, se espremem e apertam, rumo a sei lá que abismos? Por que não sabemos mais sobre o tempo e sobre as coisas que de fato interessam? Por que não somos felizes e nunca temos paz? Não conhecemos o pulsar dos astros, nem o enorme silêncio dos oceanos. Nossa vida está pendurada por uma folha de palma, é plana, e se enrola como uma folha de papel quando morremos. Sei disso, e creio que as ratazanas e outros seres insignificantes também o saibam.
Eloah Margoni
Ontem, na hora do almoço, estava só no jardim de meu local de trabalho quando, de repente, vi sair das folhagens uma ratazana marrom de tamanho considerável, rabo um pouco roído, pelagem de cor uniforme e intensa mas não escura, porém sem brilho ou viço. Ela se assustou ao ver-me, com seus olhinhos espertos e também marrons, esses sim, vivos e viventes. Assustei-me, idem. Susto bilateral, sintonizado e recíproco. Enfim, sentimentos de alerta muito semelhantes. Mulher e ratazana irmanadas na surpresa do encontro breve e inesperado. Mutuamente e de forma imediata, fizemos um acordo tácito: nenhuma tinha nada a ver com a vida alheia... Pelo respeito mútuo decidimo-nos. A marrom percebeu meu pacifismo. Passou, nem devagar nem correndo, rumo à calçada e ao bueiro defronte. Foi-se, mas a impressão daqueles olhos pequenos e inteligentes, inquiridores, ficou-me.
Hoje de manhã foi uma rolinha na calçada de um terreno cheio de mato. Lá estava ela. Uma das asas meio capenga; mas ligeira, correu esconder-se em meio ao capim. Estaria ferida? Sobreviveria? Teria sede? Fiquei pensativa, mas tinha de atravessar a avenida, de trânsito até intenso; precisava chegar ao trabalho, ganhar meu dia. Seguir enfim. Em meio à nossa organização social que se sente tão superior eu vivo! Mas átomos de roedores e de bichos ainda mais estranhos gravitam-me pela alma. Não posso esquecer–me de alguns seres...
Fui assim pensando na vida das criaturas pequenas e na pequenez que também é nossa, embora não a reconheçamos. Indagava-me por que acreditamos que a formatação da nossa sociedade, de incoerente e tola complexidade, seja o máximo. Cheia de falências e atrocidades esta sociedade que inventamos! E o que seria de nós se, de repente, ficássemos sem energia elétrica para sempre? O que seria das cidades se os computadores pifassem? Semideuses em ruínas seriam revelados.
Porque, se somos tão magníficos, não vemos os spins dos elétrons, as cordas que vibram, as camadas que se desdobram, esticam-se, se espremem e apertam, rumo a sei lá que abismos? Por que não sabemos mais sobre o tempo e sobre as coisas que de fato interessam? Por que não somos felizes e nunca temos paz? Não conhecemos o pulsar dos astros, nem o enorme silêncio dos oceanos. Nossa vida está pendurada por uma folha de palma, é plana, e se enrola como uma folha de papel quando morremos. Sei disso, e creio que as ratazanas e outros seres insignificantes também o saibam.
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