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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Dona VidaMarisa Bueloni
Chega-se a uma altura do bom combate em que começam os questionamentos. A pergunta que mais fazemos à Dona Vida é: por quê? Dona Vida é circunspecta, vive calada e tem cara de poucos amigos. A gente dá uns cutucões nela, provoca, acha que está sendo inteligente e ela nem tchum.


Então, começa-se a ir a velórios, a se despedir dos amigos e das pessoas amadas. Gente da nossa geração que Dona Vida vai levando embora e vem aquele nó no peito. Quem será o próximo? Dona Vida não responde, faz que não é com ela. Dissimulada que dá ódio.
Tenho uma bronca crônica de Dona Vida. Não que ela tenha sido muito má. Não foi. Mas houve vezes em que pedi uma ajudinha extra e ela não estendeu a mão. Ficou aquele travo na boca. Contudo, nenhum grande ressentimento. Hoje, conversamos numa boa, somos até amigas.

Dona Vida não me deu um tantão assim de dinheiro. Nem precisava. Ela sabe que eu não ligo. Fui logo avisando: um prato de comida e um canto para morar tá bom demais. Uma época, apaixonada por São Francisco, fiz voto de pobreza. Ela veio sorrateira e me disse: “Olha lá, hein? É sério?”. Confesso que balancei. Voltei atrás. Lá veio ela, de novo, toda sarcástica: “Acho bom. Fica na tua”.

Uma vez, Dona Vida me convidou para dar uma volta numa curva suspeita. Não fui, claro. Declinei do convite. Ela se ofendeu, cara. “E aí, sua fedelha, me ignorando?”. Não, Dona Vida, que é isso? Só achei que não era coisa para mim. No final, ela me deu os parabéns. Pode?
Dona Vida adora me ver num hospital. Esperneio, discuto, não adianta. Ela vem de mansinho, me faz vestir aquela peça verde-clara que amarra nas costas e me acompanha ao centro cirúrgico. Olho para ela, com lágrimas nos olhos. Penetra-me na veia junto com a anestesia e me sopra no ouvido: “Vai dar tudo certo”. Fechos os olhos, me entrego, confio nela.
Houve um tempo que Dona Vida me colocou numa encruzilhada. Entre a cruz e a espada, como se diz. Foram décadas de um corpo-a-corpo daqueles. Mas esta luta eu venci. Ah, venci. Tenho um baita orgulho de poder dizer: eu-ven-ci!!!

Dona Vida me ajudou. Muito. Ensinou-me a ser temente a Deus, a respeitar e amar o próximo, a ter princípios, a andar direito. Sobretudo: a me contentar com o que eu tenho. Foi a melhor lição. Ela vive me repetindo isso: “Feliz de quem aprende!”.
Bom, quem não aprende com Dona Vida, não aprende com mais ninguém. Dizem que ela é a melhor escola. Há uma porção de almas por aí que nunca pegaram num livro e enchem o peito para dizer que estudaram com ela. Dona Vida não tem propriamente um diploma para dar. Mas isso não impede ninguém de se formar.

E os amores, Dona Vida? As paixões? Por que a senhora age como age? Que é isso, santo Deus? Não pode ser menos intempestiva e mais ponderada? Até eu tenho mais juízo! Assim não há fôlego que aguente, minha cara. Tá bom, tá bom. Vá mais devagar, que tento acompanhá-la.

Vinha eu cansada pelo caminho. Você cansado pelo caminho vinha. Eu tinha a alma cheia de sonhos. Você a alma cheia de sonhos tinha. É, Dona Vida!... Você junta, depois separa, a seu bel prazer. E nós ficamos ali, à beira da tumba, olhando para o vazio, sem entender nada...
Ah, Dona Vida, por que você é assim tão misteriosa? Tire este véu da face. “Que queres tu de mim?” – sei de cor todos os boleros e sambas-canções aos quais fui apresentada pelo seu gosto musical. E até os cantei. Mas não fiz carreira. A senhora não me levou a sério. Lembra?
Dona Vida é sábia. Tem lá seus rompantes esquisitos. A gente joga com a maior disciplina e toma cartão amarelo sem parar. Às vezes, não se entra em campo e é preciso ficar no banco de reservas, quietinho. Quem não ficou? E olha, o árbitro da partida é assim com Dona Vida, tomam chopinho juntos toda sexta-feira. Não adianta passar a lábia nele. O homem é fera.
Briguei feio com ela, uma vez. Xinguei Dona Vida dos piores nomes. Acabei com ela. Arrependida, fui à igreja pedir perdão. Um Anjo loiro de longas asas veio sentar-se ao meu lado. Contei tudo a ele, que insultei Dona Vida, que perdi a cabeça. Ele alisou meus cabelos e disse, me consolando: “Todos perdem”.

Quer saber de uma coisa, Dona Vida? Chegamos juntas até aqui. Ponto pacífico. Vim chifrando os barrancos, mas sem a marvada pinga. A senhora é de uma sabedoria a toda prova. Eu sou aquela aluninha ingênua, de olhos arregalados, curiosa – ainda! – e prestes a aprender a lição final. Não embace, ensine logo, por favor! Estou louca para conhecer este segredo, descobrir o seu sentido.

Dona Vida recua, recolhe-se aos seus aposentos. Alega precisar de um tempo para se recompor. Tem seus humores. Ela é quem manda, sempre. Paciência. Dona Vida detesta e-mail, msn, essas coisas. Não tem conversa. Com ela é tudo ao vivo. Aguardo.

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