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Reunião na Biblioteca

terça-feira, 6 de julho de 2010

Conto premiado no Concurso Arte Cemiterial - Requiescat in Pace

REQUIESCAT IN PACE
(descanse em paz) 2o lugar
Ademir Barbosa

O que me encanta no cemitério são os anjos. Minha mãe, que nada entendia de latim, mas sabia tudo de anjos, dizia que nos pergaminhos suspensos pelos anjos se escrevia PAX porque no tempo em que foram criados por Deus era essa a grafia. Minha mãe foi enterrada num túmulo azulzinho, mas sem azulejos e anjos. Contudo, ao seu lado, o anjo atlético do túmulo da baronesa abana as asas sobre o jazigo de mamãe nos dias de verão. É uma companhia e tanto esse anjo.
O túmulo de mamãe é da família. Lá estão outros parentes, mortos há muito tempo. Dentre eles, vô Genésio, mais conhecido como Dom Eunuco. O velho ganhou no jogo do bicho, comprou um bar, cercou com arame farpado e bebeu até morrer. Antes, porém, havia morrido Virgulino, seu cão, e o cadáver havia ficado embaixo do balcão do bar, fedendo para ninguém entrar. Dom Eunuco ganhou esse apelido porque foi expulso de casa pelo sogro, que o ameaçou capar porque ele havia dormido com todas as cunhadas e a sogra. Foi salvo pelo pároco, que lhe deu o número de telefone de um primo distante, de Minas, e morreu na mesma noite. Dom Eunuco fez combinações com os algarismos, jogou e ganhou. Deu um sino novo para a igreja e mandou fazer um mausoléu para o pároco, enterrado no centro do cemitério, para onde acorrem famílias aflitas, pedindo-lhe paz, saúde, e inspiração para jogarem no bicho, na loteria, no bingo da paróquia, na quermesse da catedral.
Além de vô Genésio, dividem espaço com mamãe o primo Batuíra, menino morto porque sua bicicleta foi pega por um caminhão, e Zia Carmela. Quando Batuíra morreu, o túmulo tinha algumas rachaduras. A mãe dele não dormia, pensando que goteiras poderiam molhar os cabelos do filho morto. Então, apesar do período de chuvas, o marido foi ao cemitério e restaurou todo o túmulo, pintando-o de azul, o azul original sobre o qual vieram outros azuis (mas nenhum azulejo) ao longo do tempo e dos mortos.
Zia Carmela era o retrato da alegria, e mesmo no santinho da missa de sétimo dia ela estava sorrindo na foto. Aliás, no caixão ela sorria. Fazia doces em formato de animais:vaquinhas, esquilos, baleias e até centauros coabitando numa lata de panetone vinda da Itália. Fazia também cachecóis coloridos para os sobrinhos e pulôveres para os vizinhos, caminhos de mesa para as comadres e bolsinhas para as netas que estudavam fora e moravam sozinhas. Gostava de contar histórias, em especial quando trabalhava com as agulhas. Lobisomens de sítio, sacis, caixeiros sem cabeça, aparições de santos, trapalhadas de Mussolini, cachorros falando latim, padres vampirizados e uma famosa enchente do século passado eram alguns dos seus temas prediletos. Não saía de casa sem passar batom. Dizia que seu amor (não o falecido, mas um soldado inglês morto de tifo havia quase cem anos) a espreitava nas esquinas e às vezes a beliscava na padaria. Queria estar pronta para quando ele viesse buscá-la. Numa tarde de sol e algum vento, ele finalmente veio.
Dos outros parentes que jazem no mesmo túmulo, não vale a pena falar, pois não viveram.
A baronesa certamente serviu de modelo para o anjo que protege e enfeita seu túmulo. Embora não haja registro disso nos arquivos do velho Fabretti, que gostava de ser chamado de escultor de mausoléus, vi muitas fotos da baronesa que correspondem ao anjo (a cintura sempre apertada, os seios proeminentes sob os vestidos, os olhos verdes, um tanto tristonhos, o sorriso de quem organiza obras beneficentes), e ela também já me apareceu em sonhos. A foto mais famosa é a do rosto, a mesma que ornamenta o túmulo, sobre as letras douradas do votivo Requiescat in pace. Mas há outras tantas nos arquivos da cidade, a baronesa sempre trajando cores fortes, como o vermelho e o amarelo. Em meus sonhos, geralmente não traja nada.
Foi estrangulada pelo marido porque gostava de nadar nua na cachoeira da fazenda, o que ele não permitia. Saía de manhãzinha, auxiliada por duas mucamas, e mergulhava na piscina natural formada pelas pedras. Secava-se ao sol, acariciando o corpo deitada na pedra maior. Dizia para o marido que ia à missa. Ele acreditava e ia visitar as escravas na sensala no mesmo horário. Um dia ela cochilou distraída na pedra grande, esqueceu-se do tempo enquanto as mucamas conversavam sob uma árvore. O marido, que resolvera campear a propriedade, passou pela cachoeira, viu a cena, e estrangulou a mulher. As mucamas choravam. Arrependido, encomendou o túmulo e o anjo ao velho Fabretti. Morreu louco, sem filhos, nem escravos e foi enterrado na capela da fazenda. Depois de sua morte, cúria diocesana, e depois a prefeitura, passou a cuidar do túmulo da baronesa, sempre impecável em seu mármore lustroso, local de peregrinação de mulheres em busca de cura para frigidez.

Um dia, o corpo sob a terra, saberei os segredos dos meus mortos, cujas histórias, vidas, datas, se misturam no mesmo pó. Por ora, devo conhecer-lhes o destino (mesmo para evitá-lo), saber que baronesa não mais existem e que nunca foram anjos. Mas que os anjos podem ser mulheres, lá isso podem, desde que Deus os criou, num tempo em que, nuas, nadavam e descansavam nas pedras, em paz.

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